Quero dormir, mas estão fazendo um edifício ao lado, estão serrando madeira e triturando pedra, estão batendo martelo sobre o meu peito. Quero dormir, mas este não é um lugar de dormir, esta é uma cidade em construção. Eu sou um homem envelhecendo, e tenho trabalhado, sou um homem solitário e não tenho grandes ambições; estou cansado, e quero dormir. Esta é uma ambição justa; estou cansado de tudo; e ainda há pouco vi aquela a quem há tão pouco tempo eu amava tanto, e que senti? Tédio, talvez piedade, mas muito cansaço. Cansaço de não a ter, e de não a ter tido; cansaço de querer ― mais sutil e venenoso que o cansaço de ter.
Por que ela insiste em existir? Assim não faz outra coisa que se tornar cansativa e chega a ser levemente ridículo que ela exista. Eu não a quero mais, seria trocar um tédio por outro. Eu poderia mudar de cidade, mas afinal eu não mudo de pessoa; tenho de carregar esta minha pessoa, com seus cabelos, seus pés, joelhos, cotovelos, suas longas memórias, todo seu corpo. É melhor estender esse corpo sobre a cama, e suspirar, e deixar que ele durma.
Mas em volta de mim, e sobre meu peito, e sobre meu ventre, resolveram construir uma cidade. Incorporações, incorporações, edifícios de apartamentos, quarto e sala, quitinete, entrada de dez por cento. Estão me matando devagar, pela tabela Price; estão me serrando, me triturando, me martelando, com o objetivo de ganhar dinheiro.
Que loucos são esses? Não devem ser daqui. Se tivessem vivido e sofrido longamente esta cidade, como eu tenho, esta cidade com seus homens e suas mulheres, e seus encontros e desencontros, e penúrias vis, não iriam adensar e agravar esta loucura construindo outra cidade nos interstícios desta, não se esbaldariam sobre os baldios nesse afã criminoso de entupir o mundo de gente entre cubos de cimento.
Para que esses cubos? Para que as pessoas existentes se abriguem da chuva e das outras pessoas, e se reproduzam ― mas para quê? Incubarão outras pessoas, incorporarão outros cubos, e íncubos e súcubos, e esta cidade ficará tão densa que se formarão associações secretas que distribuirão patrulhas rodo e ferroviárias e navais, e matagais, e lameirais, e nos mangues do sul e na entrada da barra, em todos os acessos terrestres estarão vigiando e matando os tupiniquins e gringos, arigós e missões culturais, e porão fogo no chão dos aeroportos, e gritarão no seio das noites e através das pálidas madrugadas: ninguém entra!
Defenderemos nossos cubos e favelas superlotados: não possuímos mais espaço algum para novas amantes desamadas e amadas desamantes; chega, chega de confusão.
Estão serrando, e triturando e martelando, estão incorporando estruturas de cimento que futuramente mobiliarão com chippendale, colonial, rústico, mexicano e moderninho de perna fina com pintura amarela, com geladeiras de muitos pés cúbicos, rádio, revistas, bocejos, brigas e solidão.
Minha solidão é penetrada por estes ruídos, meu turvo sono afinal os aceita, e incorpora todas as incorporações, e durmo como um herói, durmo entre martelos que batem e serras zunindo, durmo agitado mas durmo pesado, numa vingança animal contra a cidade desumanizada.