Forte de S. João, Laje, Santa Cruz – e depois esses caminhos que se perdem no mato, essas prainhas que se abrem debaixo de umas árvores, entre dois rochedos.

Não sei se estamos na Charitas ou em Jurujuba; de meu barco vejo, com preguiça, pequenas casas cor de rosa, com janelas azuis. Eu escrevi – "meu barco" – e o barco não é meu. Mas neste momento está sendo. Entre as árvores, escondida, no morro do Cavalão, está a casa do Caloca.

O barco não é meu, a casa não é mais de Carlos Leão, mas a propriedade não é um fruto, é uma pilhéria. Se nesta manhã de sol desapareço do escritório e fujo para as águas azuis, e levo amigos, e nos rimos, e bobeamos pelas praias e ilhas, e comemos camarão frito na casca, e bebemos cervejinha gelada, e nos sentimos ainda mais amigos porque o mar é azul e o sol é louro – então alguma coisa, neste barco, já é eternamente minha.

Quem comprou a casa e as árvores de Carlos Leão no morro do Cavalão? Nem sequer sei o nome desse homem feliz, mas devo confessar a ele que a sombra da mangueira é um pouco minha; ele não comprou a sombra. A sombra quem a faz é o sol, quem a azula é a lua, quem a deixa perene no ar, remota mas fresca, é a saudade do que passou. E o tempo não vence a realidade mais profunda das coisas: dos pés que pisaram aquele chão, de nós que ali respiramos, e sentimos e vivemos e sonhamos, alguma coisa ficou e vive. Não somos fantasmas: para nós essa gente que está morando hoje na casa é que são fantasmas – seres vagos, sem substância nem face. Eu me lembro de um momento, uma tarde, sob as árvores, sobre o manso mar; o Rio de Janeiro parecia tremular na distância, havia um pássaro piando.

Lembro outros momentos. Mas o barco deixa longe, a boreste, numa névoa de luz, Icaraí. Lá ficou um ginasiano passeando pela praia, morando numa casa do Campo de S. Bento. Ele vai neste barco, já bordeja o velho forte, vai para uma praia qualquer entre palmeiras, vai distraindo, deixando a melancolia na esteira das espumas, vai na proa, calado, sem pensar, quase sem sentir, apenas sentindo que está indo, que vai, sem nem querer saber para onde.

rubem-braga
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