Passei um dia áspero, nervoso – escrevi às pressas, revi matéria, fui à Câmara, fui ao banco, telefonei, andei de táxi, andei a pé, trabalhando, providenciando, discutindo com homens. E agora que volto para o escritório, antes de cumprir a última tarefa da jornada, que é escrever esta crônica para amanhã – eu demoro um pouco, na alta janela, a ver as nuvens cinzentas escurecendo sobre os edifícios. Há, perto, um ronco de avião que passa para o aeroporto e lá de baixo, de longe, vem o buzinar esparso dos automóveis, como bichos tristes.

Mas essa visão do céu, e dos morros, e de um trecho de mar, e esse vento que sopra do sul, mas não chega a ser frio, tudo me dá paz, um instante de contemplação e sossego. Seria doce tomar um banho de chuva, deitar numa rede com “o pijama irreal de dez anos atrás” que Rimbaud emprestou a Vinicius, na fazenda.

Hoje até a fazenda é irreal tanto a Boa Esperança com seu ribeirão onde uma vez um carro de boi matou um filhote de jacaré, onde madrugadinha a gente ia colher os peixes no pari, e às vezes de noite, levando sacos de estopa que voltavam cheios, tarrafear cascudos junto das pedras negras – como a fazenda do Frade com seu córrego que descia cantando e depois murmurava grave entre moitas, coalhado de carás, piabas e sangue-sugas – e a grande mesa escura, da sala de jantar onde gerações gravaram seus nome a canivete.

Porque essa lembrança me vem de súbito e me faz bem, lembrança de paiol de milho e de porteira, de moinho de fubá e do couro das bruacas, de café no terreiro e pés de mexerica, do meu tio com uma lata de criolina na mão cuidando do gado? Eu me pergunto se era feliz – ali, ou na velha casa de Cachoeiro, ou na praia onde pesquei e amei. Pergunto-me isso, e penso no meu filho, e no que ele sente ou não sente. E de súbito neste remanso da noitinha, em que bebo um pouco de lembrança como quem bebe uma cuia de garapa antes de recomeçar a trabalhar, antes de botar o papel na máquina, antes de voltar ao elevador, ao asfalto, ao lotação, à pressa inconsequente e vazia da vida urbana – eu me sinto feliz, de uma felicidade triste, mas sólida e calma, neste momento de solidão. Uma felicidade pobre, mas quieta, de homem na idade madura.

rubem-braga
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