Sou dessas pessoas que não entendem das coisas, e não consigo perder uma crença infantil na boa fé dos homens. 

Quando vim para o apartamentinho onde moro, alguém me disse para inspecionar as instalações e ver se tudo estava em ordem. Olhei vagamente o fogão, o banheiro, as portas, mas era de manhã, havia sol, havia céu, havia mar lá fora, havia até gaivotas voando, até moças correndo na praia e achei que tudo estava bem. Como é que podia reparar que o piso da varanda não tinha caimento para a água, que o forno do fogão não funcionava e que a chaminé do aquecedor estava solta e cairia ao primeiro vento noroeste que entrasse pela janelinha basculante do banheiro?

Disseram que reclamasse à firma. Reclamei. O homem que atendeu ao telefone foi gentil, pediu que repetisse todas as minhas reivindicações, tomou nota de tudo, disse “perfeitamente” ― e não apareceu ninguém. Depois da quarta ou quinta insistência veio um mulato de ar competente que levou a chaminé dizendo que ia corrigir um defeito ―  e não a trouxe de volta, jamais. Entrementes o aquecedor resolveu não aquecer; e quando instado ao cumprimento de seu dever agia com um terrível mau humor. Meu lindo corpo andaluz estava debaixo do chuveiro e recebia gotas de água fervente, seguidas de uma ducha fria, seguida de um estrondo, seguido de um silêncio, depois um chiado, depois água fervente, depois gelada, depois coisa alguma. Quanto ao vaso, fazia ruídos de bomba atômica; o bidê revelou-se atrabiliário, as torneiras da pia acabaram confessando que eram daltônicas, a vermelha era fria, a azul era quente, quando ambas não estavam secas e o ralo não estava entupido.

Ordenei aos meus serviçais que telefonassem diariamente para a firma, que fossem ao escritório e o inundassem de reclamações. Ao fim de alguns meses recebi pessoalmente, de pijama, a visita do engenheiro responsável, um homem encantador que até já morou em Cachoeiro, que até conhecia meu irmão; um sujeito ótimo, simpático, que aceitou e elogiou meu cafezinho e foi-se embora para nunca mais voltar nem mandar ninguém. Ao cabo de oito meses veio um sujeito que me mostrou umas rodelinhas de borracha, falou em vedações, virolas e gaxetamento, além de válvulas e fibras, arrancou várias torneiras e aparelhos, organizou no meu pequeno banheiro uma grande paisagem de bombardeio da população civil, ameaçou voltar no dia seguinte e felizmente jamais cumpriu a ameaça.

Depois de mais cinco telefonemas veio um senhor de óculos da firma do aquecedor que se limitou praticamente a achar esquisito o quadro de Di Cavalcanti ― e se foi. Foi uma pena eu não ter tomado o nome e as fotografias de todos os técnicos bombeiros gasistas eletricistas hidráulicos (sou capaz de apostar que um deles era o engenheiro Fiuza) que me honraram com sua visita. Chegou a vir até um sócio da empresa construtora que pareceu muito interessado no chuveirinho do bidê, achou que eu tinha muitos livros e quis saber onde é que eu comprara a minha geladeira. Vinguei-me com certa soberba dizendo que a recebera de presente de uma de minhas amantes, e acho que ele estranhou um pouco, depois de olhar com cuidado minha cara e meus cabelos brancos.

Ao fim de dois anos o fogão a gás começou a dar choques elétricos, os globos das lâmpadas amanheciam cheios d’água, a torneira de água fria produzia fumaça, e eu desisti da firma. Não quero dizer o seu nome. Sou um homem de bem e de boa fé, e acho que neste Brasil nem tem graça mais a gente dizer o que não funciona, o que não presta, o que não vale, o que não é. Quero ser um cronista construtivo. Arranjei, por indicação de meu sapiente amigo Carlos Echenique, um bombeiro que tem esta espantosa qualidade: é bombeiro mesmo. É um pretinho feio, baixo, de bigodes, com um sorriso de maus dentes, mas de boa índole, que tem um pretinho menor como ajudante. Não o indico ao Livro do Mérito para não misturá-lo com alguns calhordas que já têm seu nome lá. Indico-o aos meus vizinhos de Ipanema, Gávea, Lagoa e Leblon: telefonai para 27-1462 e chamai o pretinho Heleno. Levai-o ao vosso banheiro e à vossa cozinha, explicai-lhe vosso temperamento e confessai-lhe vossos problemas: ele dá um jeito.

É por causa de um ou outro sujeito assim, perdido na massa desta enorme população de Vigário Geral, que o Brasil ainda existe um pouco, ainda se aguenta, ainda é vagamente habitável. Acho isso mais excitante que contar histórias de tarados, Banco do Brasil e Cexins, que não escandalizam mais ninguém: escândalo de verdade é isto, publicar no jornal um nome de um homem que, além de saber trabalhar, trabalha. Ao trabalhador Heleno a minha sincera homenagem e o meu grande espanto.

Mas não será ele o verdadeiro tarado?

rubem-braga
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