Amanheci resfriado — e a manhã também está resfriada, com nuvens pardas e sujas e um pequeno vento maligno.

Ontem tive um dia mau, um desses dias em que a gente tem vontade de ir até o aeroporto, puxar as notas que tem no bolso e os níqueis, e dizer em qualquer balcão de companhia: “me dá isso de passagem”.

A cidade estava francamente hostil. Pululavam mulheres feias e homens desagradáveis. Parece que eles se telefonam e combinam todos sair à rua em massa determinado dia, ocupar os pontos estratégicos, patrulhar as calçadas, inundar os transportes, abarrotar os botequins, cortar toda a esperança e estragar toda a paciência de um pobre homem distraído e de boa vontade.

Fizeram isso. Vieram de todos os bairros e mal escondiam sua nefanda combinação: falavam-se em voz alta, abraçavam-se nas portas dos elevadores diante da raiva impotente dos cabineiros e dos passageiros que tinham pressa, conversavam de boca cheia nos restaurantes e fungavam nos cinemas. Até os bêbados que encontrei eram antipáticos: pareciam falsos bêbados.

E onde estavam as outras pessoas, as mulheres suaves, os amigos reconfortantes, as pessoas desconhecidas que, entretanto, nos fazem bem, a criança que subitamente fala alto e faz todo mundo sorrir, o mulato que sentimos nosso irmão quando nossos olhos se encontram depois de verem ambos a mesma mulher que passa com certo jeito engraçado, ou por exemplo aquele vendedor ambulante e clandestino de cigarros estrangeiros a quem não quisemos comprar nada e mostramos nosso cigarro mata-rato, e nos filou um dizendo amavelmente: “isso é muito melhor”; e aquele chofer que podia ficar irritado com a barbeiragem tremenda da mocinha do Austin mas apenas lhe gritou com um sorriso: “você acaba aprendendo, meu bem”! ou o sujeito do interior que numa intimidade súbita nos fala de sua lavoura e de seu filho que está querendo estudar para aviador, ao passo que o mais velho tem gosto é para criação de gado, “falou com ele de boi ele está satisfeito” — onde estão as almas boas, as súbitas mulheres lindas de vestido simples, os doidos simpáticos, as caras amenas, as vozes estranhas que nos comovem por algum acento familiar, a gente humana da cidade?

Creio que todos foram avisados de que era dia de se esconderem. Talvez os amigos estivessem reunidos em uma festa ótima improvisada, da qual me falaram hoje, e quando eu me queixar de que ninguém me avisou dirão “puxa, mas todo mundo sabia, eu estava crente de que você ia aparecer”. E então descobriremos que saímos de um lugar cinco minutos antes de um amigo chegar ou chegamos a outro dez minutos depois, e nos telefonaram quando não tinha ninguém em casa, e nós discamos inutilmente três vezes para um aparelho com defeito — assim ficamos desprezados, entregues à população hostil, bebendo de cara voltada para a parede, o conhaque amargo da solidão...

rubem-braga
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