Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente, na Manchete, de 19/02/1955, com o título "A holandesa do terraço"

A grande sala da redação tinha dez janelas. As duas do norte davam para uma parede, as três de oeste para uma construção, alguns telhados, e um morro verde, e as janelas do sul davam para o terraço do edifício onde há um apartamento que parece uma casinha, onde mora a moça muito loura e talvez um pouquinho gorda.

Rosada e cantarolante, ela aparecia às vezes no terraço para secar ao sol os cabelos soltos. Os que trabalhavam em nosso vigésimo andar a conheciam; alguns se deixavam ficar na janela, a fazer olhares; outros lhe davam adeus. Ela não olhava, nem sorria, nem cumprimentava; fingia-se atenta às nuvens ou ao seu grande gato ruivo. Na verdade, não a importunávamos demais: cada um tinha sua mesa e sua máquina, e devia escrever. Às vezes, um dos rapazes pretendia ter ganho um olhar de simpatia, mas era mentira; jamais algum conseguiu prová-lo, quando fizemos teste de deixá-lo aparecer a uma das cinco janelas do sul, enquanto, atrás de uma outra, víamos, através das persianas descidas, se a moça loura correspondia a seu olhar. Na qualidade de secretário da redação posso atestar que jamais foi comprovado um só caso de anuência ou correspondência da moça loura aos olhares e gestos do corpo redatorial. Sempre nos pareceu, entretanto, que essas discretas manifestações não lhe faziam mal: não sabíamos se era casada ou tinha algum amor, ou se apenas por princípio não pessoa que se possa namorar de terraço a terraço; mas em todo caso essa homenagem que vez em quando lhe era prestada pelos meus rapazes (se assim posso me exprimir, como o capitão de um time de futebol)... bem, suspeito que essa homenagem lhe acrescentava algum dengue ao andar e um certo donaire no modo de agitar os cabelos molhados, a ver o céu.

Não me arrisco a dizer que fosse uma vaidosa; talvez a nossa vinda para aquele vigésimo andar a aborrecesse, tirando-lhe de algum modo a liberdade de evoluir em seu terraço, entre antenas e chaminés, à volta da grande claraboia; mas enfim estou em que olhos de rapazes não fazem mal a raparigas, antes como que lhes torneiam sutilmente a polpa dos braços e das panturrilhas; melhoram sua cadência, empinam-lhes o busto em mais airosa postura, flexionam-lhes os músculos da cintura: são, para muitas, como que um imponderável bálsamo de beleza; o serem vistas lhes faz bem.

Engano-me? Em todo caso, mal é que não hão de fazer, olhares. E nunca os moços chegaram a ser impertinentes; eu estava sempre presente à redação, e minha austeridade impunha aos rapazes um limite em suas manifestações; apenas um quis abusar da minha benevolência de chefe, emitindo assobios, mas não deixei de lhe chamar atenção, com uma certa cordura, mas firmeza.

“A holandesa”, dizia um; a “virgem loura”, dizia outro; este a tratava de “madona”, aquele de “roliça”. Mas quando escrevo assim parece que nos preocupávamos realmente com a bela vizinha. Não é isso. Cada um de nós tinha sua vida, e ainda um jornal por fazer, telefone para falar, relógio para olhar, elevador para descer e amores, tristezas, ambições. Nosso jornal saía na hora certa, alegre e valente; talvez um tanto descuidoso; e a vizinha era um acidente à margem, alguma coisa como nuvem ou canário. Em outra crônica eu prometo lhes dar (espero estar sendo lido também pelos meus antigos rapazes) notícias da loura vizinha.

rubem-braga
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