Em S. Paulo, olhei as árvores da rua alucinadas, através das vidraças do apartamento amigo de Clóvis Graciano, vi que era noroeste e disse comigo: com esse, de avião, eu não vou.

Deixamos a volta ao Rio para o dia seguinte, quando o sudoeste já tinha trazido nuvens de leite e chuva fina e fria. É verdade que o avião ficou rodando uns 40 minutos antes de descer no Rio; baixava, baixava e, entretanto, a gente não via coisa alguma a não ser nuvens.

Será que tínhamos perdido a direção da terra, iríamos ficar baixando eternamente, em voltas, no espaço? Foi então que sentimos que a lei da gravidade é uma grande garantia. Podia a Terra ficar rodando no espaço e nosso motor roncando com força; havia aquela força maternal, amiga, que nos prendia ao nosso prezado planeta — tão triste, tão errado, mas o único, afinal, em que temos relações, roda de botequim, família, amantes, namoradas e mesmo algum crédito nos bancos.

Os minutos passavam monótonos, com o avião roncando naquele triste limbo leitoso, naquela completa escuridão branca, roncando e rondando com pachorra. Mas sabíamos que lá embaixo havia uma cidade com montanhas verdes e casas de telhados vermelhos e uma grande baía azul; havia café com leite, telefone e pão: um certo sossego e a cama costumeira, a vista do mar, os livros. Acenderam-se dois avisos, um dizendo para apertar o cinto, outro para não fumar. “No smoking”. Deu-nos uma vontade infantil de dizer tolices, explicar ao senhor do lado porque era proibido usar smoking naquele avião; as pessoas de black-tie pagam passagens mais caras pois viajam em um avião especial, noturno, com poltronas forradas de veludo negro e aeromoça com vestido preto e colar de pérolas cultivadas, servindo uísque aos senhores passageiros, alguns dos quais devem fumar com piteira, outros usar cachimbo. A passagem desse avião chama-se “invitation au voyage” e vem em cartão branco impresso em relevo: cada passageira tem direito a uma orquídea... mas de súbito, entre duas massas de nuvens, um pedaço de mar com ilhas e um barco branco a navegar. E depois navios, lanchas, barcas, edifícios e arsenais lá vamos em reta — um leve choque surdo, um discreto galeio, outra vez as rodas batem no chão, agora rodam pelo chão, o único perigo é esse chão de cimento se acabar e a gente — pumf! — cair dentro d’água: mas antes do chão acabar o avião faz uma curva. Abrem a porta, trazem uma escada, descemos respirando com prazer o vento frio, sentindo na cara a chuva fina. Uma boa cidade, o Rio de Janeiro.

rubem-braga
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