Está uma coisa lamentável, está uma coisa triste esse desafio público de duas senhoritas a propósito das próprias curvas. Por causa de um concurso que houve, essas moças, açuladas por uma reportagem marota, dizem bobagens, sujeitam-se a poses mais ou menos cafajestes. Na apuração do pleito houve gritos e pancadas; agora se eterniza essa ignominia de medição de coxas e bustos.

Deus, que é quem me conhece bem (tanto que até de vez quando enjoa de mim), sabe que não sou um puritano. Tenho pela beleza física um sentimento quase místico, uma espécie de adoração. Meu grande pecado será amar a beleza da mulher mais do que a própria mulher. Não me importa que essa beleza seja eminentemente perecível; estou numa idade em que já vi — com que revoltada tristeza, com que funda melancolia! — muita fada se tornar em abóbora. Mas os momentos de beleza, os instantes divinos em que a beleza se fixa em nossos olhos, em nossa alma, esses vivem dentro de nós; acordados ou em sonhos sua magia nos faz feliz e nos comove. Há pouco tempo acordei chorando de alegria, de pura emoção porque revivera em sonho, na pureza de suas linhas antigas o corpo de uma mulher que muito amei, o que na vida ela me disse, o que eu lhe disse, o que fizemos, todas as emoções de uma história de grande paixão se perderam, se gastaram sob a tirania do tempo: alguns instantes de beleza como aquele ficaram dentro de mim, são o que de melhor eu tenho de meu, é o que me autoriza a morrer sem remorso nem pena, e me faz dispensar a fatigosa esperança de uma outra vida melhor.

“Todo mundo fala do Céu e ninguém esteve lá” — diz Marian Anderson em um spiritual conhecido. Eu já estive lá, em alguns instantes de felicidade e extrema pureza, apenas eu não sei, ninguém sabe contar.

Não é, portanto, por desprezo, mas pelo profundo respeito que ela me inspira que me desgostam essas ignóbeis discussões a que são levadas, por vaidade e tolice, essas moças bonitas. Contam que houve no Brasil um ministro da Fazenda que mandou gravar nas moedas a efígie da república reproduzindo, em suas linhas puras, o perfil da mulher que amava. A silenciosa homenagem foi descoberta, a oposição cevou-se no escândalo daquele amor proibido que assim se extravasava. Mas a mulher era bela, e a dignidade de sua beleza superou o que poderia haver de malicioso e ridículo no caso.

Não foi por causa da moeda que os cidadãos deixaram de amar a república. E a desvalorização de nosso dinheiro começou quando a bela efígie foi substituída pela cara de certos cavalheiros. Não foi por acaso o sr. Vargas quem enterrou o tostão?

Essas moças estão fazendo da própria beleza uma espécie de moeda falsa, no mercado equívoco das vaidades tolas e das pequenas vantagens. A literatura gaiata das revistas de cinema, as legendas de adjetivos marotos sob as fotografias de atrizes parecem uma nova mentalidade: o espírito Coca-Cola aplicado a essa grave coisa que é a beleza feminina. Ainda ontem, despedindo-me de uma grande amiga que é um exemplo de formosura, eu pensava, em silêncio, nesse mistério simples e infinito que é a emoção da beleza. Entristece-me vê-lo assim barateado, envilecido em concursos tolos e disputas vãs. Valeria a pena repetir para essas moças, no plural, o conselho de Beaudelaire: “soyez belles et taisez vous”.

rubem-braga
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