Essa chuva longa e farta, com esse vento frio, parece que une mais todas as coisas. Na rua as árvores e as casas estão todas molhadas e fazem uma só massa de coisas no ar cinza e escuro. O gato, o cachorro, a mulher, o menino, o homem, todos são bichos que se abrigam para não se molhar, e parecem sentir essa união primitiva.

A esquina quieta, mergulhada nessa chuva, está mergulhada em si mesma, longe de qualquer outro pedaço de mundo. Raramente passa um auto; e ele mesmo vai apressado, como um bicho encolhido em sua casca preta, fugindo da chuva. Quando o telefone toca ― sua campainha parece mais aguda e mais alta no ar frio desta manhã ― e nos traz o calor de uma voz amiga, então é como se a cidade fosse um arquipélago. Há, aqui e ali, longes e impossíveis, envolvidas na bruma, ligadas apenas pela possibilidade do telefone, pessoas amigas entocadas em seus cantos. E é comovente que uma dessas criaturas ilhadas em sua casa tenha se lembrado de outra e telefonado como para dizer apenas que não, não é verdade que o mundo esteja para sempre fragmentado em ilhas sob um céu de chumbo, e cada criatura tenha apenas para viver um quadrado de paredes tristes e um pequeno retângulo de vidraça embaçada para ver o mundo.

A empregada vem contar o que aconteceu. Uma pobre mulher com seu filhinho surgiu na porta dos fundos e pediu para se abrigar. Foi despedida de uma casa, não tem para onde ir e está com aquela criança nos braços. Não, não quero ir vê-la. É melhor deixá-la em seu canto; tenho uma espécie de pudor em ir interrogar com palavras ou apenas com os olhos a sua miséria e seu abandono. Minha empregada já lhe arrumou um quartinho com uma cama, já lhe deu comida. Ela está metida em um cantinho quente, como um pequeno bicho que se esconde em sua toca. Amanhã ou depois fará sol, ela arrumará algum jeito de vida, continuará por aí a batalha penosa e vulgar de sua vida miserável.

Para que ir vê-la, individualizar sua miséria igual a tantas na cidade leviana e cruel? Eu não tenho nada com isso. Não sou um cidadão solicitado a pensar e agir sobre os dramas da cidade; não foi para isso que essa criatura bateu à minha porta. Sou um animal em cuja furna, nessa manhã de chuva, houve espaço para mais um; minha cozinheira lhe dá um prato de feijão, arroz e carne como qualquer bicho, tendo comido, abandona a outro o resto de sua ração.

Sim minha casa é uma toca primitiva, neste mundo de água e frio; e apenas aconteceu que entrou, para um abrigo provisório, uma fêmea com sua cria. Somos apenas, desde que já comemos, uns bichos mansos e bons.

Lá fora a chuva parece um pouco mais forte, o dia mais escuro, as coisas mais densas e unidas. Ficamos a olhar a chuva sem pensar em nada, sentindo apenas esse prazer primário de estar protegidos. Somos uns bichos abrigados e, apesar disso, meio tristes; mas é apenas a visão da chuva que nos dá essa vaga e mansa tristeza animal.

rubem-braga
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