Lendo, outro dia, as reminiscências infantis de um escritor sobre a abolição e a república, fiquei a pensar nos acontecimentos políticos que me impressionaram no começo da vida. Lembro-me (tinha 5 anos) de estar no caramanchão de minha casa quando alguém disse que o Brasil tinha ganho a guerra da Alemanha. Não me recordo de ter ouvido falar dessa guerra antes. A primeira notícia que dela tive foi essa da vitória; fiquei contente na hora, mas creio que não pensei mais no assunto.

O que muito me impressionou (9 anos) foi o centenário da independência; esperei com ansiedade o dia sete de setembro. Houve grande ajuntamento na Praça Jeronymo Monteiro, com banda de música e oradores falando do coreto. Depois, a multidão, com archotes acesos, caminhou pela rua, atravessou a ponte municipal; do lado norte, subimos um morro onde haviam armado um grande cruzeiro. Não me lembro se houve missa ou reza, lembro-me de um discurso de um chefe político, o sr. Fernando de Abreu. Eu estava achando bonito andar assim todo mundo no meio da noite, mas tenho a lembrança de uma certa decepção. Achei que a festa acabou cedo demais; por mim eu caminharia léguas ainda, principalmente se tivesse um archote (não me deram nenhum), depois achei a ideia de cruzeiro meio sem graça; eu esperava vagamente que aparecesse uma coisa assim como a estátua de Pedro I a cavalo, como havia no meu livro escolar. As palavras “centenário da independência” me faziam prever algo de mais estupendo, como se as pessoas devessem ficar maiores e brilhar, toda a terra estremecer, porque era o centenário.

Coisa de um ano depois, outra lembrança: eu ia para a escola quando encontrei com meninos que já vinham voltando, pois não ia haver aulas. Perguntei porque, e eles gritaram alegremente: Rui Barbosa morreu! Rui Barbosa morreu! Juntei-me a eles e também comecei a gritar para todo mundo: Rui Barbosa morreu! Nunca ouvira falar de Rui Barbosa, mas na mesma hora, pela conversa de gente grande fiquei informado de que: a) era o homem mais inteligente do Brasil, grande patriota que tinha assombrado o mundo inteiro; b) não valia nada porque tinha votado o estado de sítio e era um vendido, porque era o advogado da Light. Fiquei um tanto perplexo com essas informações e ainda mais (perplexidade alegre) por não haver aulas.

Tenho outra recordação que acredito ser dos 11 anos: o batalhão do meu colégio formou (não me lembro se ainda era anspeçada ou já chegara a terceiro sargento, posto máximo que atingi, e do qual fui logo rebaixado a cabo; acho que era cabo) e fomos à estação esperar a força pública do Espírito Santo que estava voltando da Revolução de São Paulo. Lembro-me de nosso orgulho em formar juntamente com soldados de verdade, que vinham da guerra e tinham ganho a guerra; muitos deles usavam barbas e todos nos pareciam heróis. Grande foi a minha estranheza quando nosso pelotão, não sei porque, ficou parado junto ao meio-fio, e ouvi a conversa de uns homens que estavam ali na calçada. Diziam que aqueles soldados tinham feito um papel muito feio em São Paulo e eram covardes e ladrões, tinham roubado muita coisa, inclusive automóveis, que estavam carregando para eles. Efetivamente vi alguns automóveis em um trem de carga, o que me impressionou.

Bolas! Eu preferia que Rui Barbosa fosse um grande homem para todo mundo e a nossa força pública tivesse feito uma bela guerra contra o Isidoro; mas nas ruas de Cachoeiro nunca faltou um espírito de contradição, algum homem do povo de palavra solta para envenenar a nossa alegria cívica e nos ensinar desconfiança. Mesmo quando injusto, esse “espírito de porco” ainda hoje me parece útil, e detesto e temo qualquer regime que o suprima, ou tente suprimi-lo.

rubem-braga
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