Confesso que eu andava pensando numas viagens... É bom, pegar um navio ou um avião e dar um giro por aí — descansar um pouco do Brasil, de seu governicho perrengue, seu crônico desgoverno; descansar um pouco do Rio, da falta d’água, dos cortes de energia, do trânsito enrascado, de todos esses problemas, esse desconforto do povo, principalmente dessas caras importantes que a gente vê todo dia nos jornais discutindo, opinando, espalhando tédio. Descansar da gente mesmo, que vai emburrecendo demais por causa de tudo isso — porque uma viagem é uma espécie de drible que uma pessoa passa em si mesma.

Nas outras cidades do mundo também há problemas, também há gente cacete, também há tédio. Mas o viajante não tem nada com isso; vai passando, olhando as coisas, de alma limpa, nova, indiferente. E além disso quantas pessoas tão queridas estão espalhadas por este mundo, e como seria bom vê-las, como seria doce o momento de sentar com uma delas na mesinha de un bar em Paris, em Washington, em Lisboa, em Bruxelas, em Roma... — e ouvir a voz amiga, ver os olhos, a cara amiga, saber coisas, dizer coisas, no estrangeiro a pessoa amiga é mais amiga, cada um tem mais necessidade de ternura brasileira, há menos interferência, mais suave entendimento. Mas contra esses sonhos vagabundos há uma realidade vil: o dólar a 45. Não sei o que foi que inventaram esses senhores do governo, mas positivamente eles não se conduziram bem comigo. Fiquei no Brasil o ano passado inteiro deixando para viajar este ano, e agora estou preso, amarrado pelos 45 nós desse câmbio vilíssimo. Há o remédio de escrever cartas, as cartas não dizem nada, as cartas têm uma voz falsa, neutra, sem intimidade nem calor. Carta não é remédio para curar nada, é apenas aspirina que mal atenua a dor da saudade, carta é uma pastilha barbitúrica. Barbitúrica! Duvido que alguém me mostre uma outra palavra mais feia na língua portuguesa. Barbitúrica! Sento-me para escrever uma carta a uma pessoa querida e de repente me aparece essa palavra, como uma pequenina mulher barbuda que sofre de ácido úrico, e com voz esganiçada, a fazer caretas, me diz: eu sou a barbitúrica, eu sou a barbitúrica!

— É melhor não escrever carta nenhuma, não comprar nenhum dólar e gastar os 45 cruzeiros dando um passeio a Paquetá, jardim de afetos, pombal de amores.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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