Meu caderno de endereços está velho demais, e começo a passar os nomes e números de telefone para um novo. É um trabalho fatigante: tenho de me esforçar para fazer boa letra, e chego à conclusão de que conheço muita gente, especialmente começando por “A”, “L” e “M”. Mas à fadiga não é apenas física, é também sentimental.

É fácil eliminar o nome do amigo que foi para o estrangeiro ou do simples conhecido com quem se teve um negócio a tratar e não se tem mais. Mas dá um certo remorso suprimir o amigo de quem a gente se afastou, embora sem culpa. É como se o tivéssemos riscando de nossa vida, jogando-o fora. E essa Maria para quem eu telefonava tanto, por que trazer seu número para o novo caderno? Sei muito bem que nunca mais lhe telefonarei: só o faria pela madrugada, bêbedo, mas há muitos anos não telefono mais quando bebo. De qualquer modo, porém, este pequeno trabalho me obriga a considerar o caso de Maria, a pensar no samba “Risque” de Ary Barroso, a ficar um pouco sentimental sobre essa espécie de falecimento de Maria.

Quanto a Joana, aqui está seu endereço escrito a lápis, apressadamente, um dia destes, em uma página errada. Conheço Joana há algum tempo, mas só há poucos dias tomei nota de seu telefone; transfiro-o à tinta para a primeira linha da página da letra “J”, e escrevo seu nome devagar, como quem faz um carinho. 

Joana! Daqui a um ano, um ano e meio, quando este caderno estiver sujo e velho, com que mão, Joana, escreverei teu nome no caderno novo? Esse número, que hoje não sei discar sem emoção, porque ouvir sua voz é como beber um licor que pode ser venenoso, esse número talvez não vá para outro caderno, mas fique preso na minha memória entretanto infiel, como um remorso ou uma saudade.

Outro dia em minha casa o telefone bateu, alguém disse “ah” e quando ouviu minha voz dando o número pediu desculpas, embaraçada, e desligou depressa. Eu me engano facilmente, mas julguei reconhecer uma voz antigamente querida. Talvez tudo que tenha ficado de minha lembrança dessa pessoa seja esse número de telefone preso no inconsciente, parado e inútil, que o acaso de uma distração fez vir à tona.

Todos nós somos um cemitério de números e de nomes; não somos nós, é a vida que os mata, mas nós carregamos seus pequeninos cadáveres secos. Talvez seja isso o que nos envelhece, o que dá uma contrariedade vazia a um momento de solidão, uma vaga tristeza ao dormir; às vezes parece que esses mortos se movem levemente...

Mas que importa a vida que se foi? Escrevo em maiúsculas ― JOANA ― e suspendo meu trabalho para discar seu número e lhe dizer que ela entrou de estandarte na mão, coroada de flores, no meu caderno novo.

rubem-braga
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