Avisa-se às pessoas de bem que um mimoso bicudo desapareceu da casa de seu amo e senhor no bairro de Ipanema. O fugitivo ainda é jovem e não “virou”, isto é, ainda tem uma cor mais ou menos castanha e o bico escuro, pois não atingiu a idade em que se torna preto de bico branco. Atende pelo nome de “Contestado”, pois é natural da região que o volumoso estado de Minas Gerais disputa avaramente ao pequeno e glorioso estado do Espírito Santo

Come alpiste e vários outros alimentos, mas tem uma fraqueza especial por sementes de cânhamo. Quando essas sementes lhe são oferecidas pela manhã ele vem comer na mão; mas uma vez alimentado não convém introduzir nem a mão nem um dedo sequer na gaiola, pois o intruso será recebido com uma forte bicada.

É, de seu natural, desconfiado e valente, já tendo derrotado em pelejas memoráveis dois canários-da-terra e um grande pássaro preto. É também muito ciumento pois parou de cantar desde o dia em que o referido pássaro preto foi admitido na mesma varanda onde reside e começou a cantar alto e desafinadamente.

Apesar de seu natural aguerrido o “Contestado” é propenso a folguedos juvenis. Qualquer objeto estranho que se coloque na gaiola é inicialmente examinado de longe, primeiro com o olho esquerdo, depois com o direito. Depois é examinado mais de perto, e afinal recebe uma bicada. Se o objeto não reage, e é leve, é imediato transformado em brinquedo; pedaços de barbante, principalmente coloridos, são de agrado especial.

Dispondo de água limpa, o fugitivo se banha diariamente e no rigor do verão mais de uma vez por dia já atingiu um nível de educação em que não procura mais se banhar no bebedouro nem beber a água destinada ao banho. Depois do banho faz uma minuciosa toilette com o bico e coça várias vezes a orelha com a patinha. Quando está dormindo e é despertado demonstra um terrível mau humor e se posta em atitude de defesa, de bico aberto, produzindo um grasnar semelhante ao de uma galinha choca. Bem tratado é, entretanto, capaz de gestos suaves e atitudes distintas.

O fugitivo foi criado na roça e não conhece a topografia do Rio de Janeiro, de maneira que dificilmente voltará à sua varanda. Caso ele venha a cair em algum alçapão, a pessoa que o encontrar fará obra caridosa devolvendo-o ao seu dono que é homem já de certa idade, com a vida esburacada de tristezas e desilusões, não possuindo gato, nem mulher, nem cachorro, por falta de espaço no lar.

O dono desolado antecipadamente agradece.

rubem-braga
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