Maio entrou bem, com vento fresco e mar forte. Não sei se já lhe contei que o Arpoador está acabando. Foi, parece, uma grande maré, de lua, na entrada do outono, e calhou vir um sudoeste raivoso: muita areia foi levada. Agora o posto de salvamento caiu. A melhor praia do Rio está reduzida a um cantinho de pedra e areia; veja em que dá esse interminável governo Vargas!

O qual Vargas falou aos trabalhadores, e falou bonito. Como eu mesmo sou (infelizmente) um trabalhador, ouvi com atenção o que ele disse, e adorei este pedaço: “Há um direito de que ninguém vos pode privar: o direito do voto”. Não sei porque ele está tão seguro disso: eu, por mim, sou mais desconfiado, pois esse direito alguém já nos tirou uma vez: e até para nos consolar esse alguém disse que voto não enche barriga. Creio que quem fez isso também se chamava Vargas: mas deve ter sido outro.

Ontem houve um instante de grande emoção: meu bicudo, que há muitos dias fugira da gaiola, apareceu. Empoleirou-se na antena da televisão do vizinho e ficou a olhar de banda sua velha varanda. Foi então que o vimos. Confesso que fiquei trêmulo, era como se uma pessoa morta e querida voltasse de repente. Depois ele chegou mais perto, no telhado. Seu bico está branco, ele deve estar mudando. Fui apanhar alpiste e ele sumiu. Sabê-lo vivo e livre, entretanto, me comoveu: e imagino que não esqueceu de todo seu antigo amo. Se é verdade que tivemos algumas divergências, sempre fomos no fundo, amigos. Passei horas a esperá-lo novamente. Além dos vulgares pardais e do casal de sanhaços, passaram andorinhas, que há muito tempo eu não via: apareceu um canário-da-terra e também um tico-tico e algumas rolas. Vi tudo isso, e gaivotas e bem-te-vis, mas o bicudo não voltou mais.

Com a idade, Zico, meu coração vai ficando medroso e fraco. Se um bicudo me aflige e entristece e comove assim, não sei o que seria de mim se eu me deixasse amar aquela com quem sonho. Não, não me deixo. O melhor para fortalecer a alma é reler o que nos diz Vargas: “Continuo, entretanto, ao vosso lado”... Essas coisas, meu bom Zico, é que me consolam na vida.

rubem-braga
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