Os dias e noites passam sobre a cabeça de meu amigo, ele envelhece lentamente e um pouco tonto. Quando, às vezes, desperta, no primeiro instante não sabe se é tarde ou madrugada, mas outro amigo telefona e pergunta ― “hoje tem praia”?

Chega até a janela, olha o mar; há sol. Mas que vento é esse? Entende pouco de ventos e pensa com tristeza: “se nada sei de ventos e luas e marés, como acaso algum dia poderei entender um pouco ao menos de mulher”?

Mas sua praia tem palmeiras e pinheiros, ele os olha para ver para que lado pendem batidas pelo vento. Uma noite, em um bar fechado, era tão tarde que lá fora talvez já fosse de manhã cedo, ele viu a mulher jovem e fina; estava escuro, a mulher lhe pareceu muito branca sob a mancha escura dos cabelos. Os braços longos, alvos. E distraído ficou vagamente vendo de que lado poderia estar ventando, ela penderia para o norte como o pinheiro? Árvores, mulher, mar, tudo tem a mesma substância, mutação e melancolia; a tudo é preciso estar amorosamente atento.

No seu ouvido martelam frases vulgares ― “hoje o mar não está para peixe” ou “a noite ainda é uma criança”, ou o começo do primeiro período da prova de direito romano, naquele ponto que todo ano caía; “Um dia, às margens do Genesareth, o lago azul que banha as terras santas da Palestina, humildes pescadores ouviram uma voz que lhes dizia: ...”.

Não importa mais o que dizia a voz. Cabe ao humilde pescador ficar quieto em sua praia olhando seu mar, de preferência pela madrugada, sentindo seu mar, pensando seu mar. Olhar nos olhos; sempre se comparam olhos a lagos. Mas não há apenas os olhos, há também o gesto do braço esquecido, do pé distraído; seria preciso instituir nas melhores faculdades uma cadeira chamada “Mecânica da mulher quando distraída”; há olhares de quem está pensando em outra coisa, olhares feitos diretamente pelo vago simpático, há o jeito da mulher distraída perguntar ― “hein”?

E o humilde pescador sabe o gosto da linha tensa e o da linha que de súbito bambeia. Pescar, ensinava Izaak Walton, é a um tempo ação e contemplação. Que vento está soprando hoje essas espumas do mar e esses caprichos de mulher, a que hora vai nascer a lua, e quando vem a preamar? Vamos levar nossa tribo toda para a beira do rio, vamos atravessar matas e montanhas e sóis e luas até chegar à beira do rio, é tempo de piracema, é tempo de piracema!

Há um susto nas coisas; as mulheres deslizam em silêncio como peixes.

“A senhorita hoje está muito telúrica”. Uma senhorita ou principalmente uma jovem senhora pode ficar telúrica escrevendo a máquina, ouvindo música ou simplesmente à-toa, sem fazer nada. Você pode exclamar, olhando-a com um olhar grande para abranger o corpo inteiro, um olhar em três dimensões, você pode murmurar o que o louco amigo do Chico Pires, o chamado Gargalhada, dizia no bar da praia, com um gesto largo, fitando o mar: “eu gosto é desse panteísmo”!*

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Mas é melhor que fique em silêncio o pescador humilde.

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