Nós, homens da terra e do mar, temos um mapa um tanto ingênuo na cabeça, um mapa torcido pelo desenho da costa, pelo curso dos rios e pelo rumo das montanhas. Reagimos quando alguém nos diz que o paralelo 23, que passa ali pela Gruta da Imprensa, é o mesmo de Angra dos Reis, e que a maior parte do estado de São Paulo até mesmo uma parte do Paraná está ao norte dele... O avião nos ensina a pensar em paralelos e meridianos, embora a pureza geométrica de suas retas ainda esteja presa aos acidentes da terra: o avião a jato será ainda mais livre. Em outubro, quando a Panair mandar um “Cometa” fazer esse trajeto Rio-Lima, não teremos, como agora, de procurar com certa cautela uma passagem entre os picos maiores dos Andes: iremos por cima deles e gastaremos quatro horas e meia ou cinco no lugar dessas dez que passamos alegremente a jogar buraco ou beber uísque, nesta viagem de reinauguração da linha peruana.

O voo é direto: depois da Serra do Mar sobrevoamos lavouras, florestas, campos e pantanais, e começamos a enfrentar a Cordilheira. A paisagem às vezes tem uma grave desolação de panorama lunar; há planos solenes e imensos e às vezes picos de mais de seis mil metros de altura, cobertos de neves eternas. Passamos entre eles, o avião às vezes tem de fazer uma curva para evitar essas massas imponentes que se perdem nas nuvens. O deserto nestas alturas parece infinito: mas ali, numa vertente há um pouco de terra e um pouco de água, e percebemos um retângulo de lavoura, um ponto escuro que deve ser a morada de um homem. O bicho homem conquistou essa imensidão triste: formou aqui, entre montanhas, numa depressão, uma cidade grave e grande. Oruro, de linhas severas. Duas vezes passei sobre Oruro, com certeza jamais a conhecerei, imagino uma cidade de gente austera e ensimesmada, com sua pequena franja verde cercada do deserto mineral, no frio dessas alturas. Oruro... Seria preciso talvez viver em Oruro, pensar em Oruro, ser triste e só em Oruro, triste e só como Oruro.

A rota de La Paz está fechada pelo mau tempo, só na volta a veremos.

Depois de Oruro pairamos sobre outras solidões tristonhas. Estamos alto, muito alto, sentimos que estamos em uma esquina deste planeta, em um lugar em que essa velha crosta se empinou ao enrugar. A vida está longe, lá para baixo, aqui existe apenas a terra, os ventos e o céu. É grave como o alto-mar.

rubem-braga
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