Uma vez Clóvis Graciano parou um instante no terraço de um bar, na avenida Montparnasse, para tomar um chope, e viu um velhinho de barbicha branca que, sozinho, também tomava seu chope. Perguntou ao garçom se o conhecia:

Bien sûr: mr. Henri Matisse, artiste peintre.

E apontando para um prédio em frente informou que ele morava ali. Fomos lá, dois ou três dias depois. Batemos à porta do apartamento, e uma velha empregada veio abrir. Dissemos que éramos dois jornalistas brasileiros, queríamos falar ao pintor. Ela nos mandou entrar; mal, porém, passei o biombo que estava defronte à porta, vi o pintor esticado em um sofá; o rádio tocava baixinho e ele tinha os olhos fechados. Eu disse à empregada que voltaríamos outra hora, porque Matisse dormia. Sorrindo, ela respondeu que não tinha importância; ele cochilava assim um pouco, mas não se incomodava de ser despertado. Não quisemos que ela o despertasse: achamos que não era justo incomodar o grande artista octogenário para uma conversa que nos interessava muito, mas que para ele só poderia ser enfadonha. “Vamos deixar o velhinho dormir em paz” — disse eu a Clóvis; o repórter perdia uma excelente oportunidade, mas o admirador de Matisse rendia uma silenciosa homenagem ao grande mestre.

Visitei, depois, em Vence, a capela que ele estava decorando. Matisse havia descido para Nice, mas uma freirinha gentil me mostrou tudo e, sentindo meu interesse, trouxe uma grande pasta em que o artista guardara os primeiros estudos. Vi, assim, o carinho, a paciência com que o mestre cumpria sua tarefa. Não havia apenas esboços, mas também estudos minuciosos de detalhes; sentia-se, naquela sucessão de desenhos, a procura consciente, a busca trabalhosa da simplicidade. Com mais de 80 anos, Matisse, verdadeiro mestre, procedia como um novato que não tivesse certeza de si mesmo, não confiasse na primeira inspiração, e não se conformasse em dar de si o que não fosse o melhor.

Vi, mais tarde, em Paris, uma grande exposição que ele fez na Maison de la Pensée Française. Havia quadros antigos e novos, desenhos e esculturas; e havia também as composições em papel colorido que ele acabara de fazer. Nunca me esquecerei de uma figura de mulher, de uns três metros de altura, em três cores. Das mãos daquele velhinho saíra o mais vibrante e sensual hino à beleza da mulher. Esse francês das terras frias do norte foi o sultão maravilhoso das mais belas odaliscas de nosso tempo; morrendo na sua bela Nice, cujo sol ele tanto amou na sua pintura de janelas abertas, ele nos deixa de herança essas imagens encantadoras e preguiçosas de mulheres que são da terra e do sonho, e que pairam, vagamente misteriosas e tímidas, entre coxins e cortinas de todas as cores da graça e da luxúria.

Sem Henri Matisse o mundo fica mais feio e mais triste. 

rubem-braga
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