Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente, em Ai de ti, Copacabana, Editora do Autor, 1960.

Houve pânico em algumas cidades do Norte, desse Meio Norte que fica ao sul das grandes províncias desertas do Norte Grande, e que os chilenos chamam de Norte Chico. A terra tremeu com força e em vários pontos o mar arremeteu contra ela, avançando 200, 300 metros, espatifando barcos contra o cais e bramindo com estrondo. O povo saiu para as praças e passou noite ao relento; algumas construções desabaram, mas o único homem que morreu foi de susto.

Lamentemos esse morto e também os pobres pescadores que perderam seus barcos; mas qualquer enchente carioca dá mais prejuízos e vítimas. Mas louvemos o maremoto e o terremoto pelo que eles têm de fundamentalmente pânico, pela sua cega, dramática, purificadora intervenção na vida quotidiana, pela sua lição de humildade e de fatalidade. Talvez seja bem que os homens não se sintam muito seguros sobre a terra, e que o proprietário do imóvel possa desconfiar de que ele não é tão imóvel assim; que há diabos loucos no fundo do chão e que eles podem promover terríveis anarquias. A natureza tem outros meios de advertência, como o raio e a tromba d’água; mas são demônios do céu que nos atacam. E o homem é fundamentalmente um bicho da terra, é na terra que ele se abriga e confia: apenas se move no céu e na água, na terra é que está seu porto e seu pouso. Ele pisa a terra com uma soberba inconsciente, seguro dela e de si mesmo; só o terremoto consegue lhe lembrar de maneira fundamental sua condição precária e vã e o faz sentir-se sem base e sem abrigo.

Não sei que influência tem terremoto sobre o caráter chileno; sei que muitos poderosos de nossa terra ficariam mais simpáticos e propensos à filosofía se o nosso bom Atlântico fizesse uma excursão até Barata Ribeiro e o velho Pão de Açúcar “desmoralizasse um slogan de propaganda comercial dando alguns estremeções nervosos. Houve um tempo em que Deus bastava para tornar humilde o poderoso; hoje seus pesadelos são apenas o comunismo, o enfarte e o câncer, mas ele já se acostumou a pensar que essas coisas só acontecem aos outros. O terremoto ameaça a terra com seus bens e a própria vida; sua ocorrência só pode tornar as pessoas mais amantes da vida e mais conscientes de sua espantosa fragilidade. E isso faz bem.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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