Antes de chegar ao mar acompanhamos o rio Maipo e o atravessamos, logo acima da foz, por uma ponte de centenas de metros. O leito do rio é assim largo, mas neste tempo do ano anda ele escasso de águas e se divide em vários cristalinos córregos, que ora seguem paralelos, ora se encontram, depois se dividem outra vez, alegremente, como se nessa vadiação quisessem vingar o tempo de angústias que tiveram ao nascer nos altos nevados da Cordilheira, de onde se despenham por calhadas ásperas, exíguas. É larga, a barra do Maipo e, além da barra, do alto da ponte, vemos, batido pelo vento sul, fremente de espumas, cinzento e verde, o mar.

E o reencontramos depois, ao sabor de uma curva de colina, ou fervendo entre rochedos, ou soltando sua cavalaria de ondas pela praia larga de areia escura; mais tarde o ouviremos mugir ao sol-pôr, recebendo no seu bojo o astro cansado que se esvai nas ondas em um lento sangue cor-de-rosa. Uma senhora chilena nos chama a atenção para o colorido desta puesta del sol; o colorido, minha senhora, é fraco, tênue, sem a violência dos crepúsculos tropicais; mas convenhamos em que é belo; o sol, nascendo ou morrendo no mar, é sempre belo.

Santo Domingo é um balneário pequeno, desenhado em estradinhas curvas, salpicado de casas novas e alegres; o chileno tem gosto para casas, e aqui festeja a alegria da praia com muitas cores vivas, associação de pedras e madeira, varandinhas graciosas, chaminés ― e flores, muitas flores por toda parte, mais vivas e palpitantes graças ao fundo verde-escuro dos pinheiros. Santo Domingo tem clube de polo e de hipismo, e a menininha brasileira que um casal leva passeia no lombo de um pônei gordo; tem golfe e tênis, e tem junto à praia uma grande e bela piscina de água salgada. A casa onde nos recebem é toda cheia de graça e conforto; o seu teto é um jardim, e da saleta o que se avista é o cimo das árvores e, além dele, o mar. Há mil pequenos objetos curiosos pendurados um pouco por toda parte, nesse excesso tão feminino de bugigangas e lembranças; mas tudo se funde num tom geral de palha; há palha no chão, nas portas, nas paredes, e até entre palhas se oculta um piano. Ficamos a quentar sol no jardim, tomando um vinho tinto, sentindo no vento essa mistura de resina de árvores e maresia que nos embriaga pelos pulmões. Passeio sozinho pelo bosque, deixo-me ficar na sombra e na solidão, como procurando um pouco de intimidade com essa terra do Chile; mas caminho com esse cuidado instintivo do brasileiro, habituado a se livrar de cobras, insetos, aranhas. É inútil, o Chile não tem nada disso, suas raras cobras não têm veneno, o mato do Chile é mais civilizado que qualquer bosque em volta de Paris, onde uma víbora sempre vos espreita no chão. Isso aprendi numa antologia com o bom padre Alonso de Ovalle, que já em 1600 dizia que “puede un hombre sentarse debajo de qualquier árbol y revolcarse entre las yerbas sin temor”...

Não me revolcarei. Remonto a colina, volto ao seio da família suave que juntou nesta casinha lembranças de outras terras e amizades. Quando voltamos por Techos Verdes, Llolleo e San Antonio, a noite vai caindo; abandonamos o mar; mas o rádio do carro começa a tocar uma música demasiado conhecida: Peguei um Ita no Norte.... Você ficaria muito comovido se estivesse aqui, com este vinho no crânio, nesta riba de outro mar, neste começo de noite, Dorival Caymmi, poeta de meus mares, meu camarada e meu irmão.

rubem-braga
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