Estou sonhando alguma coisa vaga e começo a despertar. Não penso em nada, tenho apenas a sensação de conforto, a de estar deitado em uma boa cama e me sentir bem. Não me ocorre indagar a mim mesmo onde estou, nem em que tempo estou; o tempo e o espaço são dados distantes e sem importância; posso ter qualquer idade e estar em qualquer lugar do mundo. Apenas sinto um calor suave, tudo é macio e está bem; essa sensação é tão boa e simples que o mais provável é que eu esteja na infância. Mas não tenho consciência disso, apenas um longe sentimento. Sinto que vou despertar, mas sabiamente resisto a isso; resisto sem esforço, de maneira meio inconsciente, dizendo para mim mesmo: “assim está bom; que eu me deixe estar assim” é melhor que não me mova...
Mas diviso vagamente, sobre o fundo claro da parede, uma cômoda alta e escura. Essa visão me inspira apenas a palavra ― “cômoda”. Mas uma vez formulada dentro de mim essa palavra sinto que ela me arrasta docemente para a infância, “cômoda” me evoca “mãe” e “quarto de mamãe”, e esboço confusamente uma sentença: “mamãe abriu a cômoda”. Penso em toalhas e em lençóis muito brancos, limpinhos, lavados e passados na gaveta da cômoda; também em cobertores; O conforto que se sente quando se está deitado com um pouco de frio e alguém (nossa mãe, com certeza) nos põe mais um cobertor, e o prende por baixo de nossos pés, o aconchega junto ao nosso rosto, para aquecer melhor.
Mas sinto que há uma luz avermelhada no chão à minha direita; percebo-a apenas com um canto do olho, e lentamente associo essa luz à sensação de que faz mais calor do meu lado direito; sem esforço, devagar, encontro a palavra para exprimir isso: “estufa”.
Então minha infância e o Brasil ficam longe. Estarei na Itália, na guerra? Não chego a me fazer essa pergunta; talvez eu a tenha imaginado depois, uma fração de segundo antes de despertar. Mas havia uma vaga noção de guerra e de inverno, de frio, de estufa e de conforto. A noção de que estava bem, mas não convinha me mover, sobretudo não mover os pés; um pé poderia ficar fora das cobertas e então eu sentiria frio.
Ouço ruído de alguma coisa que se arrasta e depois cai com um som surdo, um som fofo. Depois, silêncio. O som fofo; a palavra “fofo” me evoca uma caminhada na neve, estar caminhando na neve, afundando as botas até quase o joelho. Agora, ao contrário de antes, faço um preguiçoso esforço para me despertar. A primeira certeza boa que tenho é de que não estou na Itália, na guerra; penso assim: “estou nesse outro país onde tenho andado ultimamente”, sem que me ocorra logo a palavra “Chile”. Logo depois penso: “ontem andei na neve” e simultaneamente ouço aquele mesmo ruído de coisa se arrastando e caindo com um som abafado, fofo. É neve caindo do telhado.
Por um instante a guerra ameaça voltar: penso em Joel Silveira e Egídio Squeff, meus companheiros de alojamento em Pistoia, e também me sinto em Porreta despertando com o estrondo de uma granada de canhão. Mas logo tenho uma ideia feliz: “esses dois com quem estou aqui não são Squeff e Joel; são aqueles outros dois”. Na verdade, esses outros dois estão dormindo em outros quartos, mas eu lhes vejo a cara, e logo depois me vêm à memória seus nomes: Paulo e Vale. Despertei quase todo. Este lugar se chama Sewell, junto da mina de cobre “El Teniente”. Estou bem. Posso dormir, posso descansar, tenho uma ideia de que andei pensando, raciocinando, mas foi bom, vi que tudo está bem, posso dormir; é bom dormir.