Periódico
Manchete

Publicada, anteriormente, em Correio da Manhã, de 3 de fevereiro de 1953 e, posteriormente, nos livros A cidade e a roça, de 1957, e 200 crônicas escolhidas, de 1977.

Todos tinham-se ido, e eu dormi. Mesmo no sonho me picava, como um inseto venenoso, a presença daquela mulher. Via os seus joelhos dobrados; sentada sobre as pernas, na poltrona, descalça; ela ria e falava alguma coisa que não podia perceber, mas era a meu respeito. Eu queria me aproximar; ela e a poltrona recuavam, passavam sob outras luzes que brilhavam em seus cabelos e em seus olhos.

E havia muitas vozes de homens e de outras mulheres, ruído de corpos, música. Mas isso tudo era vago: eu fixava a jovem mulher da poltrona, atento ao jogo de sombra e luz em sua testa, em sua garganta, nos braços: seus lábios moviam-se, eu via os dentes brancos, ela falava alegremente. Talvez fosse alguma coisa dolorosa para mim, eu percebia trechos de frases, mas ela estava tão linda assim, sentada sobre as pernas, os joelhos dobrados parecendo maiores sob o vestido leve, que o prazer de sua visão me bastava: uma luz vermelha corou seu ombro esquerdo, desceu pelo braço como uma carícia, depois chegou até o joelho. Eu tinha a ideia de que ela zombava de mim, mas ao mesmo tempo isso não me doía: sua imagem tão viva era toda minha, de meus dois olhos, e isso ela não me negava, antes parecia ter prazer em ser vista, como se meus olhos lhe dessem mais vida e beleza, uma secreta palpitação.

Mas agora todos tinham sumido. Ergui-me, fui até a varanda, já era madrugadinha. Sobre o nascente, onde a barra do dia ainda era uma vaga esperança de luz, havia nuvens leves, espalhadas em várias direções, como se durante a noite o vento tivesse dançado no ar. Depois, aos poucos, foi reacendendo um carmesim, e sob ele o mar se fez quase verde. Eu ouvia a pulsação de um motor; um pequeno barco preto passava para oeste, como se quisesse procurar as sombras e precisasse pescar na penumbra. Imaginei a faina dos homens lá dentro, tomando café quente na caneca, arrumando suas redes, as mãos calosas puxando cabos grossos, molhados, frios, as caras recebendo o vento da madrugada no mar, aquele motor pulsando como um fiel coração. Duas aves de asas finas vieram de longe, das ilhas, passaram sobre meu telhado, em direção às montanhas da terra. De longe vinha um chilrear de pássaros despertando.

Dentro de casa, no silêncio, parecia ainda haver um vago eco das vozes que tinham falado na noite: os móveis e as coisas ainda respiravam a presença de corpos e mãos. E a poltrona abria os braços esperando recolher outra vez o corpo da mulher jovem. Apaguei as luzes, fiquei olhando o mar que a luz nascente fazia túmido. Uma brisa fresca me beijou. E havia um sossego, uma tristeza, um perdão, uma paciência e uma tímida esperança.

rubem-braga
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