Quando você me diz “lá em casa” eu vejo um bicho feito de ângulos, retas e paralelas, um animal composto de planos e perspectivas, feito bicho fotografado. Vejo uma porção de coisas, só depois vejo gente, quase como se fosse em detalhe. A casa fez o homem, depois descansou e recebeu gente para viver.

Ninguém sabe nada de casa. Assunto é quem nela mora. Mas as casas ‒ as casas são. Não só a decoração, o estilo e a disposição. Algo além, que não foi planejado mas começou a aparecer, desde os primeiros tijolos. A casa sente-se aos poucos, seus sinais de vida. Sua respiração é noturna e descompassada: tem algo de pássaro lidando com ninho. A casa ‒ principalmente à noite quando a gente dorme.

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De noite, você range e a casa tem medo. De noite, certos ratos que você não conhece se nutrem. De noite, pessoas parecidas com você passam de um canto para outro e não são notadas. De noite, o estranho no sótão (mesmo que seja apartamento há esse estranho no sótão) sai para brincar. Anões percorrem as estantes, um azulejo muda de lugar, mas se recompõe. Todas essas coisas lógicas e esperadas da casa a sós. A casa se mal assombra, nós apenas nos assombramos. Há uma porta que não empena depois das 23h. Um alçapão que você não conhecia engole bloco de cimento. O mecanismo funciona perfeito. O curto-circuito é você: deitado. Casa não deita: levanta.

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Mas ficou sem dormir no escuro: descobrirá como é circunstancial o dono da casa. A casa é história, nós somos cidadãos. Uma casa é um mecanismo que desandou e, de todos os seus ritmos, só oferece a você aquele que você precisa. Mas os outros, estão lá: fique acordado e veja. Nada é estranho. Estranho é você que não sabe parar, a casa é uma perfeição de paradas e freios. Pare, olhe e more.

Quando você dorme, a casa faz. Quando você sai, a casa fica. Na realidade vocês não se conhecem. São uma acomodação interesseira. Se você conseguir ‒ leva tempo ‒ vê-la acordada, vai ser duro para você. Vai querer nunca mais dormir e essa, não há dúvida, é a pior das mortes.

ivan-lessa
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