Tinha a mania de imitar cearense. Fazia o sotaque à perfeição, utilizava-o em certas horas do dia para certas perguntas e respostas, com certas pessoas exclusivamente. Eram vários os seus cearenses. Mas gostava de um em particular. Tinha a voz grossa, um ar debochado, ciciava um pouco. A imitação se aperfeiçoava, o personagem ganhava consistência: já via sua roupa, a marca de cigarros que fumava, onde morava, em que trabalhava. Quase que tinha nome. Cada vez aparecia por mais tempo, com mais frequência.
Um dia o cearense ficou. Não conseguiu mais arrancá-lo de sua alma, ele que era louro, de olhos azuis e nascera em Pelotas, mas virou cearense. Mudou de casa, emprego e hábitos. Deixou de cumprimentar os amigos, fez novas amizades. Passou a chamar-se Flammarion Bezerra. Era visto com uma ponta de curiosidade e estranheza: não tinha o tipo físico de Flammarion, mas, depois de alguns minutos de papo, não restava dúvida, era, dos pés à cabeça (que invisivelmente se achatava) o Flammarion.
Passou a sofrer da nostalgia nordestina: chorava ao se lembrar do sol escaldante que não conhecia, as comidas típicas (“Que ninguém prepara feito lá!”), namoradas que não tivera, escolas que não frequentara.
Não aguentava mais de saudades. Um dia arrumou as malas, deu um jeito nos negócios e voltou para o Ceará.
Está lá até hoje. De vez em quando envia para sua antiga mulher ‒ a casada com o gaúcho de Pelotas ‒ que nunca chegou a entender direito a situação, uma ou outra carta. São cartas de voz grossa, ar debochado, um pouco ciciantes. A mulher chora e não entende nada. Ele está lá: louro, feliz, cearense. Parece, inclusive, que seus negócios vão muito bem. Flammarion Bezerra: Importação e Exportação.
*
‒ Você gosta de seu irmão?
‒ Não. Mas acho ele engraçado.
‒ De que mais você gosta?
‒ De vermelho.
‒ E de cachorro?
‒ É vermelho?
‒ É.
‒ Então gosto.
Menino que desenha música, que fica quieto num canto com medo de visita, que escuta coisas e não diz nada, que fez quintal e porão no apartamento, esse menino eu entendo, desse eu gosto. Ponham-me na mesma sala com ele e, em dez minutos, estaremos os dois de conversa. Uma conversa desconfiada (de ambos os lados) mas muito significativa, cheia de pressentimentos.