Teodomiro era desses bêbedos impecáveis, se é que se pode conceder a um vício roaz os predicados da perfeição: não brigava, não discutia, não falava alto, não tomava dinheiro emprestado, punha todo o cuidado na sua aparência, a camisa muito limpa, a roupa bem passada, os cabelos penteados. Um belo rapaz, de olhos escuros e brilhantes. Formou-se em medicina com bastante sucesso, se descontada a sua falta de vocação e de tempo. Pois desde o último ano de ginásio que se dedicou à paixão do álcool, não turbulentamente, como os outros moços que bebiam de vez em quando, mas com seriedade e determinação. Era como se não pudesse fazer outra coisa. Bebia sozinho e em bares distantes, embora recebesse com amabilidade o amigo ou colega que o abordasse. Não praticando a profissão, vivia de jornalismo.
Contava 28 anos quando começou a sofrer os primeiros sinais do delirium-tremens. Certa madrugada, abrindo a porta da sala (morava com a sua velha mãe), viu uma vasta mesa com seis lugares de cada lado: doze homens vestidos de preto e de chapéu na cabeça tomavam sopa em silêncio, sob o olhar atento de um mordomo muito alto que se perfilava em uma das cabeceiras. Claro que se assustou, tremeu, suou frio, sentiu vontade de gritar. No entanto, como já esperasse qualquer coisa daquele gênero, conseguiu dominar os nervos, atravessou a sala, cumprimentou com timidez os convivas, e pé ante pé foi trancar-se no quarto. Os doze cavalheiros soturnos não lhe responderam ao boa-noite, limitando-se apenas a suspender o ritmo das colheradas para dirigir-lhe um olhar grave e frio, sem erguer a cabeça.
Em que lhe pese o vício, Teodomiro era um temperamento contido; acostumou-se a encontrar vez por outra em sua casa a silenciosa e sombria consoada. Dava boa-noite e ia para a cama, onde aguardava o amanhecer. Habituou-se a tal ponto, que uma suspeita lhe infundiu um novo pânico: se uma noite surgisse mais um comensal, um estranho? Se, em vez de doze, deparasse com treze homens à mesa? Não que fosse supersticioso, mas a possibilidade do aparecimento de um intruso abriu-lhe no espírito a brecha por onde entrou incontrolavelmente o mais cruel terror. Desse medo entretanto não morreu Teodomiro: os convidados – já os considerava assim – continuavam sempre em número de doze. Ele os contava com o rabo do olho, ao entrar, e ia dormir, não digo descansado, mas na companhia de outros demônios familiares que lhe atormentavam os sonhos.
O verdadeiro medo, tão ilógico e descabido quanto o terror que lhe incutia o décimo terceiro conviva, sobreveio-lhe alguns meses mais tarde.
Do escritor austríaco Otto Weininger se conta que, em uma noite muda, ouvindo o ladrar pungente de um cão, descobriu todo o mal que trazia dentro da alma; convencido desde então de que seria um criminoso nato, Weininger se matou aos 24 anos de idade. Também no mundo fechado de Teodomiro irrompeu um cão, um cão que latia nas madrugadas quietas e insuportáveis, longe, muito longe. O cão do jovem filósofo lhe trouxe pelo menos uma mensagem precisa; o que latia para Teodomiro levava-lhe um apelo abstruso, um grito rouco, imperioso mas desolado, que dizia isto:
– Vem vê vovô. Vem vê vovô. Vem vê vovô.
Há uma comicidade infantil nesse recado que nos provoca o riso; mas em Teodomiro a voz do cachorro só provocava as forças obscuras, que se punham a agitar-se dentro dele como um bando de lebres em pânico. Eram as heranças ancestrais do terror que o grito animal lhe despertava com aquela insistência dentro da noite:
– Vem vê vovô. Vem vê vovô.
Teodomiro se lembrava pouco de seu avô, apenas de um homem grande, de barbas cinzentas, que lhe punha às vezes ao colo e lhe deixava escutar o tique-taque do relógio. Mas, se não o conhecera muito na infância, nem por isso deixou de sentir-se compadecido pelo apelo até as lágrimas atrozes. O cão ladrava-lhe até que as cordas vocais se desafinavam em ganidos dolorosos. Seu avô precisava dele, seu avô latia-lhe com angústia de uma várzea distante. Uma noite, Teodomiro abriu a janela e respondeu ao chamado, primeiro como homem, com palavras de consolo, depois como cão, latindo-lhe alguma coisa desesperada. Como não se aplacasse o apelo, Teodomiro passou a curtir o dilema entre o dever e o terror, entre a compaixão e a incerteza: sentia-se na obrigação de acorrer ao chamado e tolhido ao mesmo tempo pelo medo. Crucificado entre a piedade e a covardia, destroçava-se em um pranto vil e violento de homem, acuado naquela zona restrita em que um dos elementos do composto humano –
o medo – se liberta como em uma reação química. Era o medo em estado puro, o medo em si mesmo, apartado das ambições, dos apetites e das vaidades da nossa natureza.
Mas uma noite morta, quando o cão vociferava agoniadamente, Teodomiro reagiu contra a pusilanimidade, e foi andando com os olhos esbugalhados e misericordiosos; orientando-se pelos remotos latidos do cachorro, cruzou a cidade, ganhou os bairros, passou os últimos subúrbios, chegou a um descampado coberto de mato; perdia-se, voltava sobre os seus passos, acompanhava pistas falsas no vento, sempre em busca do apelo. Pedaços de sua roupa iam ficando pelo caminho, arrancadas, seu corpo sangrava, tropeçava, caía, levantava-se do chão para ouvir de novo o grito do cachorro:
– Vem vê vovô. Vem vê vovô.
Finalmente, exausto, tombou sem sentidos quando o céu começava a clarear. Horas depois, no pronto-socorro, despertando da coma, quis saber do colega que se achava a seu lado onde estava. O médico preferiu dizer-lhe que não era nada, repousasse apenas, indagando-lhe como se sentia. Teodomiro não respondeu logo. Abriu mais os olhos, disse mansamente:
– Estou muito bem; agora eu vou ver vovô.
O médico baixou-lhe as pálpebras sobre os olhos, já sem qualquer brilho, mas libertos do medo para sempre.