Periódico
Manchete, nº 501
Publicada também em: livro O colunista do morro, de 1965.

No tempo de menino, em Belo Horizonte, havia de moças bonitas duas dúzias e mais três. Três que a gente não tinha muita certeza de escalar no quadro de cima. O número é estimativo, mas a verdade era concreta. Minas Gerais ainda se espreguiçava na economia agropastoril; confinada à montanha, precariamente educada e vestida, anemizada por sete mil preconceitos, a moçada mineira gozava uma juventude curta e sem brilho. 

Moças bonitas, é claro, surgiam, raramente embora, nos mais imprevisíveis distritos, alumbrando as regiões. Em São João del-Rei, por exemplo, luzia uma garota meio pálida e quase triste, como convinha aos sonetos, mas linda na suave nobreza do perfil. Para os lados do Triângulo, em Uberaba ou Uberabinha, falava-se de tempos em tempos em novas beldades aparecidas. Do Norte, do Sul, da Zona da Mata, de Varginha, Três Corações, Carmo, Diamantina, Juiz de Fora, Montes Claros, Figueira do Rio Doce, de qualquer município, próspero ou emperrado, podia chegar a notícia da existência de uma estrela de primeira grandeza.

Uma constelação esparsa iluminava o estado de Marília. As jovens se casavam, a ansiosa expectativa tornava, outras moças bonitas começavam a despontar aqui e ali, por todo o áspero e melancólico território. Em suma, a beleza feminina era um fenômeno individual, gratuito, raro e generoso como o talento; o que não havia era condição social para a existência numerosa e permanente de mulheres belas. O milagre acontecia ou não acontecia; quando acontecia, o rapaz solteiro arregalava os olhos aflitos na esperança privilegiada de desposar a donzela de peregrina beleza. Não o conseguisse, durante um ano era o mesmo respeitado como portador de uma paixão magnífica e incurável. (O cultivo da dor de cotovelo alheia pelas populações substituía a leitura de romances.) Depois, o apaixonado, moderadamente feliz, também se casava, com moça feinha e prendada, fecundando a província.

Drummond diz que Minas não há mais. Na verdade, Minas mudou muito. Fábricas, piscinas, campos de esporte, aeroportos, foram alternando depressa o regime social. Exercícios físicos, dinheiro e dietas nutritivas cumpriram rigorosamente o seu dever; entre as gentes mais favorecidas, já se distingue uma média de beleza e saúde como fato coletivo.

Na fase poética da feiura, o mineiro descia para o Rio como a alma do Purgatório ingressa no clarão do Paraíso: arrebatada pela quantidade e a qualidade dos anjos. Já quando o trem noturno ardia sob o sol de Cascadura, os olhos de Minas desfrutavam as premissas de um andar diferente, ancas largadas ao ritmo do corpo, formas que não se ocultavam sob as vestes, pernas fornidas e nuas, timbre de voz sem timidez – a carioca. Às moças montanhesas faltava (se me entendem, por favor) um vago toque de obscenidade, que é a raiz do magnetismo animal. Era o Rio uma cidade fascinante e perigosa, feita de braços, pernas, coxas, seios, cabeleiras, lábios, lábios vermelhos e sadios. Copacabana doía de tanta mulher bonita. Nós, mineirões, disfarçávamos o terror.

Que terror? Esse que a mulher bela e desenvolta provoca nos homens sombrios, desconfiadamente virtuosos. Éramos bonzinhos, pois nem só o céu, diz o mestre, talha a bondade, mas também a timidez. Os grandes pecados públicos não são para Minas Gerais, e o Rio sempre pecou às escâncaras, sem pudor, com alegria e confiança.

Se calhar, voltarei ao assunto.

paulo-mendes-campos
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