28 jul 1962

O despertar de José

Periódico
Manchete, nº 536
Publicada também em: Manchete, de 17 de fevereiro de 1973, com o título Os mundos de São Paulo; e livro O colunista do morro, de 1965.

José rejubilava-se no ardor plurissentimental das estações: lambendo as pimentas rubras do verão, chupando a laranja sonolenta do outono, mastigando o não fruto do inverno (a ausência fazia José sofrer de gozo) e o morango enfim da fadiga primaveril.

Pois José tinha ciúme do poente quando madrugava, e ciúme do nascente quando anoitecia. Entre a pompa mortuária da noite e o parto sanguíneo do dia.

José tinha fome de tudo: devorou caranguéis ensopados, pancrustáceos enormes, patatas, patatinhas, patatões, fígado de piregansos, rabelanguejos ao molho de anjo, zirrins, ziostras antipásticas, raviólivivavida, rebombocados, empaçados tártaros, mariscones, esmargots faisandés, fricassuras de caragôuts, sangre, mocorugas; pois nada lhe saciava a gargântua. 

José tinha uma sede (mas uma sede!): soverteu pingalho ao som de viola, roxos, angozetes, chadoques, meblises suaves de aragem, borguinhões fulvos, marasmutes raros, cherrisques envelhecidos em tonéis de carvalho, angustiosos branhaques, chumbos ardentes, todos os venenos da consolação; pois nada saciava a sede crua.

José ia pelo mundo como a hiena percorre a noite hermética: à cata de despojos, esfomeado em angústia, à espera desesperada de uma esperança. 

Mas também o mundo tinha fome: comia os olhos de José, o fígado, os rins, o pâncreas, roeu-lhe o coração. José não prometeu resistir, mas resistiu. 

Deu para interrogar as matérias: a paciência da madeira o fazia espreguiçar enternecido; o fogo o enrolava lentamente; a pedra bloqueava seu coração já bicado pelo abutre; mas a água se bebe; mas o ar se respira.

José organizava a seu modo os números e as formas: a espiral o aterrorizava; a perfeição do três lhe convinha; o círculo o induzia a uma despachada humildade, um côncavo despojamento. O círculo lhe fazia bem.

Pois José, como quase todo o mundo, confiava na malícia inescrutável do carbono, na força da escuridão, nos pressentimentos, nas inocências díspares, na reciprocidade do mal.

José se desorientava muitas vezes nas encruzilhadas femininas da Terra: no vórtice da ravina, nas axilas da encosta, no nevoeiro da córnea quando vai de leve garoando, no sol que brota do joelho, nas espadilhas mansas, nas túrgidas colinas litúrgicas, nas curvas do devaneio, nas retas, nas redondilhas dos rubens, no estuário dos dedos, no arquipélago de Sardas, no anvale de afogo, no vertevelo esquinado, no ápice, no ápice de onde via aonde, aonde macho algum alçou, acamados que são em neves de esquecimento – os píncaros femininos da Terra. Pois José se consumia no horizonte do símbolo. 

José sofria agudamente de mulheres: alsas como haspas, grálidas, eurálidas, gordafonas, focemegres, mulheres de todos os timbres, iarapeias vesúvicas, argentesas, frangentinas, portuguaias, cuxaslungas ecumênicas, bogaris mimosos, bovarys de blue-jeans, magranfinas, dentucinhas gentis, míopes, etíopes, todas as mulheres, marutas de esquina, mulheres dióculos, diósculos, dioráculos, pútridas até, pálidas, polidas, sujas, brasilenas queimadas, nordestímidas, histéricas, cibernéticas, mineirundas, columbófilas, coleópteras, cleópatras de bolso, de curta metragem, de longa duração; pois nada lhe saciava verbi gratia o coração.

Com tentáculos, antenas, pseudópodos, José quis agarrar a distância, as ciências, a alma, os fantasmas, emoções, sensações, ideias, cores e têmperas do mundo. 

Mas José era entrefolhado de simplezas e amadureceu. Maduro, descobriu a sobriedade. O mundo simplesmente. Nada mais. O caminho da libertação, o caminho. Não agarrar mais nada. Um mundo espontâneo através de José. Nada mais olhar agudamente, mas entrever com um olhar direito. Um compasso entre o quente e o frio, o bem e o mal, a dor e a alegria, a vida e a morte. Uma visão, um entendimento, um discurso, uma ação, uma vocação, um recolhimento, uma contemplação: completos. Segundo os caminhos da sabedoria. Eliminação de intermédios entre José, as pessoas, os fatos, os animais, as plantas, as coisas. Pisa-se a terra sem sapatos, bebe-se a água na concha da mão. A unanimidade de tudo. Pois José se desembaraça de si mesmo, já inebriado da sobriedade.

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