16 fev 1963

Um homem liberto

Periódico
Manchete, nº 565

Publicada no livro O colunista do morro, de 1965, e Manchete, de 26/121970.

E eis que, onde menos se espera, neste Rio de Janeiro pecaminoso e aflito, existe um homem liberto, um homem que ultrapassou a barreira da nossa miserável condição.

Antes de contar o caso, é preciso generalizar. Que é o homem? Um animal acuado. Que é a vida do homem? A tentativa de sair da armadilha: religiões, ciência, trabalho, arte, amor, riqueza, poder, drogas estupefacientes, tudo. Uma caricatura moderna me parece a síntese mais genial da contingência humana: dois homens lado a lado em pavoroso calabouço estão irremediavelmente argolados à parede, pelo pescoço, pelos pulsos e pelas pernas; um se vira para outro e diz: “O jeito agora é o seguinte...” A vida de cada indivíduo e de todos os povos é isto: não perder a esperança, imaginar um jeito de sair do calabouço. Havia o frio, e o jeito era o seguinte: descobrir o fogo. Havia a escuridão, e o jeito era o seguinte: descobrir a luz. Havia a doença, e o jeito era o seguinte: descobrir o remédio. Há a fundamental orfandade terrestre, e o jeito é descobrir o Pai. Hoje a Terra se faz moral e materialmente pequena, e o jeito é descobrir outros corpos celestes.

Dois duros aprendizados nos resumem: em primeiro lugar, o de aprender a viver; já atingidos os primeiros estágios da sabedoria, temos de desistir, para iniciar o curso da morte. E, para a morte, o jeito é o seguinte... Houdini, o americano que se libertava de todas as cadeias, e que andou buscando em sessões espíritas a saída para a morte, é uma grande figura simbólica da recuperação humana.

O preço da existência é o medo. O homem primitivo tinha medo, por exemplo, do trovão, e fazia sacrifícios à divindade. Os deuses cruéis multiplicaram-se na Grécia, e o homem tinha medo da vingança que poderia transformá-los, por exemplo, em porco imundo. O demônio fez tremer de medo a Idade Média. A Renascença, um humanismo, até certo ponto desviou esse medo para o próprio homem poderoso, o príncipe.

Diversos foram os remédios humanos contra o medo: oferendas à divindade, exercícios espirituais, exorcismos, a iluminação budista, a resignação cristã... Finalmente, na Idade Capitalista, as formas de conjuração do terror ficam a cargo de um médico de almas, o templo é uma sala apenumbrada, o altar ritual é o divã. O nosso medo contemporâneo tem dois nomes genéricos: se é pouco, chama-se ansiedade; se é intenso, chama-se angústia. Marx e Freud descobriram que o homem é uma ilha cercada de insegurança por todos os lados. Mas é preciso sair da ilha. Como? O jeito é o seguinte...

Marx criou o homem coletivo, purificado por uma harmoniosa dependência social; Freud quis criar o homem forte na sua solidão, o homem para o qual uma rosa é uma rosa, um raio é um raio, a morte é a morte.

Esta vida, diz Santo Agostinho, e o grifo é meu, se merece tal nome, tão cheia de males, é prova de toda a raça humana haver sido condenada na primeira origem. Redivivo, Santo Agostinho questionaria em livros imensos as doutrinas de Marx e Freud. Mas não entraremos nessa discussão; o certo é que a vida é cheia de males, e o próprio Santo Agostinho os arrola: afeições vãs e nocivas, preocupações mordazes, inquietudes, tristezas, temores, falsos contentamentos, discórdias, alterações, guerras, traições, aborrecimentos, inimizades, enganos, adulações, fraude, roubo, rapina, perfídia, soberba, ambição, inveja, homicídios, parricídios, crueldade, inumanidade, maldade, luxúria, petulância, desvergonha, desonestidade, fornicações, adultérios, incestos, estupros, pecados contra natureza, blasfêmias, perjúrios, opressões de inocentes, calúnias, tramas secretas, prevaricações, falsos testemunhos, julgamentos iníquos, violências, latrocínios, e outros males semelhantes, continua ele, que não afloram agora ao pensamento, mas sitiam e cercam a vida dos homens. Hamlet, no solilóquio, dá mais algumas achegas, duas a meu ver, indispensáveis: as afrontas do amor desprezado e os agravos da idade.

Pois, meu amigo, não estou fazendo piada quando lhe digo que vi um homem liberto de todos os males, liberto principalmente de si mesmo, em um bar de Copacabana. Sem religião, sem ideologia, sem psicanálise, sem ácido lisérgico, ele se libertara, vamos dizer, na raça, no peito. O homem estava bêbado e debruçado sobre a mesa de mármore. De repente levantou a cabeça (reparem bem na perfeição da síntese) e disse a fabulosa mensagem: “Eu estou preparado! Estou preparado para a miséria!... a traição!... a dor de dente!... e o câncer!”.

paulo-mendes-campos
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