Se no mar fosse buscar sal para minhas feridas e a lição mergulhada dos peixes; se do gato tirasse os músculos que sabem repousar e a dignidade dos olhos fechados; se da árvore arrancasse esse gesto de atirar-se para cima e colhesse a surpresa de dar fruto e ter ninho; se da pedra roubasse a dura contenção e decifrasse o segredo de ser tocado e não tocar; se do fogo apreendesse uma lâmpada que não iluminasse mas apenas queimasse (e jamais a utilizasse); se a brisa incorporasse, nela me vestisse e aos que me querem bem fosse apenas leve (nada que perturbasse, nada que desarrumasse); se na estrela me jogasse e assim me transformasse em distante e noturno (mas guardasse grandeza apenas pressentida); se na terra encontrasse uma boca ― não que me levasse, como uma cova ― mas que comigo se fosse, como um trajo.
Se tudo isso tivesse, se tudo isso fizesse, eu não seria nada do que sou: seria mar e peixe, gato e árvore, fruto e ninho, pedra e fogo, brisa, estrela, terra e cova.
Sou esse despropósito de pé, esse acidente que, uma vez ou outra, se deita. Tenho o direito terrível, que todo homem tem, de fazer de minha vida uma incoerência e uma aberração, mostrando, nesse grito, meu desprezo pela crueldade e pela insensatez do universo. Pode-se ser estúpido a sós, acompanhado é difícil.
Mas creio ― e aí é que começo a doer ― que se possa e se deva argumentar com a ordem dialogar com a sanidade, estabelecer, por precários que sejam certos pontos de contato, entrando, assim, em compromisso, doloroso mas coerente, com a realidade.
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Aqui e ali, caem em minha vida, irônicos fachos de luz ― catá-los, juntá-los. Deles formar uma grande bola brilhante, jogá-la para o alto: flutuará, ascenderá em movimentos rápidos para os lados, por cima de pouca coisa dirá sua mensagem morna: talvez nem de uma rua, talvez apenas de uma casa, ou de um edifício, se tão alto chegar, mas à uma altura suficiente para não se distinguir o que nela está escrito: “Isso era eu... assim era eu... o tempo todo eu era assim...".
Por alguns instantes esse balão navegará. Espero que seja, em junho quando é mais fresco e de noite as crianças ficam mais tempo na rua fazendo fogueira. De repente, vai se apagar e afundar na espiral onde tudo se esfria: em paz, em ordem e para baixo.
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Gostaria que nesse instante de queda um menino ― que tivesse ficado acordado até um pouco mais tarde ― me visse e, ao me ver, gritasse para a rua vazia:
― “Primeiro a piar! Primeiro a piar!”