Lembro.

Lembro do verão de 1966 como se fosse hoje: começou em dezembro de 1965. Havia o Centro e havia o Bairro; eu ia para o Centro, você ficava no Bairro. Você tinha um carro cor de creme que ficava o dia inteiro ao Sol sem se derreter. Eu andava com pressa entre as pessoas da cidade. Você mexia nos objetos com medo de quebrá-los e arregalava os olhos atrás dos óculos escuros. Eu abria gavetas, eu fechava gavetas, eu olhava o chão e as paredes. Suas mãos tocavam em tecidos novos davam um nó aqui, acertavam um compasso ali. Eu trocava de camisas e ligava para o tintureiro. Você reparava que brigavam na rua e falava em Araruama. Eu queria cedo me deitar.

Lembro.

À noite nos encontrávamos sem nos tocar, como se as mãos estivessem ocupadas trazendo um cesto de frutas para ao outro refrescar. E ligávamos e ligávamos o ar ― aquele ar a condicionar.

Lembra?

Nossos corpos feitos para sete dias de sol contentavam-se serenos com a praia aos sábados e domingos: éramos morenos até terça-feira, na quarta começávamos a branquear. No apartamento havia areia nos lugares mais inesperados, um tubo espremido de óleo de bronzear na sombra da pia se esquecia, a alpargata secava na janela, e os copos de refresco sempre a se esvaziar.

(Lembro-me que você conhecia tão bem minha casa ao ponto de nela, com um simples olhar, dependurava quadros e dispunha livros. Eu nada sabia de sua casa, de seus chaveiros, de sua última lâmpada à noite se apagar. Mas você desconhecia que cada vez que não me via eu estava no seu rosto, com os olhos, a buscar.)

Naquele verão havia um rumor de cascata em torno de mim: como se torneiras de água cristalina estivessem sempre a jorrar. Era eu por dentro fugindo de minha ambição de dar e dar e, cada vez mais, dar.

Lembro, lembro.

Você enrouquecia e sua bolsa estava sempre cheia de surpresas: como bolsa de mãe e o bolso no paletó do pai. Eu fazia de conta que aquele calor todo não era comigo. Mas no meu quarto reconhecia o rumor do elevador que subia e espremia no cinzeiro um cigarro aceso e inteiro.

Lembro (mas como é que eu poderia esquecer?) da aflição de rir e do medo de chorar. Lembro, principalmente, de um menino num canto, de canivete e toco de madeira na mão, esculpindo, sem o saber um tempo perfeito ― tem de ser no verão, tem de custar caro ― que hoje chama de afeto.

ivan-lessa
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