Publicada em 100 melhores crônicas escolhidas, José Olympio, 1958, com o título "Chegou o outono", com alerações, pp, 21-24.
Não consigo me lembrar exatamente do dia em que o outono começou no Rio de Janeiro. Antes de começar na folhinha ele começou na rua Marquês de Abrantes. Talvez no dia 12 de março. Sei que estava com Miguel em um reboque do bonde Praia Vermelha. Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha, mas sempre fui simpatizante. Era o bonde dos soldados do Exército e dos estudantes de medicina. Raras mulatas no reboque; liberdade de colocar os pés e mesmo esticar as pernas sobre o banco da frente. Os condutores eram amenos. Fatigaram-se naturalmente de advertir soldados e estudantes; quando acontecia alguma coisa eles suspiravam e tocavam o bonde.
Eu havia tomado o bonde na praça José de Alencar; e quando entramos na rua Marquês de Abrantes, rumo de Botafogo, o outono invadiu o reboque. Invadiu e bateu no lado esquerdo de minha cara sob a forma de uma folha seca. Atrás dessa folha veio um vento, e era o vento do outono. Muitos passageiros do bonde suavam.
No Rio faz tanto calor, que depois que acaba o calor a população continua a suar gratuitamente e por força do hábito durante quatro ou cinco semanas ainda. Percebi com uma rapidez espantosa que o outono havia chegado. Mas eu não tinha relógio, nem Miguel. Tentei espiar as horas do interior de um botequim, nada conseguindo. Olhei para o lado. Ao lado estava um homem decentemente vestido, com cara de possuidor de relógio: “O senhor pode ter a gentileza de me dar as horas?”
Ele espantou-se um pouco e, embora sem nenhum ar gentil, me deu as horas: 13h48. Agradeci e murmurei: chegou o outono. Ele deve ter ouvido essa frase tão lapidar, mas aparentemente não ficou comovido. Era um homem simples e tudo o que esperava era que o bonde chegasse a um determinado poste.
Chegara o outono. Vinha talvez do mar e, passando pelo nosso reboque, dirigia-se apressadamente ao centro da cidade, ainda ocupado pelo verão. Penso que o resto da viagem não interessa ao público. O próprio começo da viagem creio que também não interessou. Que bem me importa. O necessário é que todos saibam que chegou o outono.