Publicada, posteriormente, em A mulher do vizinho, Editora do Autor, 1962.
Chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:
― Engoli uma tampa de coca-cola.
Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:
― Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca, minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Pode ter ficado na garganta Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja não: de coca-cola. Pode ter ficado na garganta ― urgia que tomássemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Tomei-a ao colo: vem cá, minha filha, conta só para mim – você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo?
― Engoli sim, papai ― ela afirmava com decisão.
Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:
― O que é que você engoliu: isto... ou isto?
― Cuidado que ela engole outra ― adverti.
― Isto ― e ela apontou com firmeza a parte de metal.
Não tinha dúvida: Pronto-Socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.
No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:
― Dói aqui, minha filha?
Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no Pronto-Socorro da cidade.
Batemos para o Pronto-Socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:
― Vamos já ver isto.
Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava:
― Engoliu foi a garrafa.
― A garrafa? ― exclamei. Mas era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar ― não haveria de sair por si mesma.
O médico pôs-se a rir de mim:
― Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.
― Engoli ― afirmou a menininha.
Voltei-me para ela:
― Como é que você ainda insiste, minha filha?
― Que eu engoli, engoli.
― Pensa que engoliu ― emendei.
― Isso acontece ― sorriu o médico: ― Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.
― Vai ver que engoliu mesmo ― comentou ela, intransigente: ― como eu.
― Você não pode ter engolido ― arrematei, já impaciente: ― Quer saber mais do que o médico?
― Quero. Eu engoli, e depois desengoli ― esclareceu ela.
Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva.