O sujeito vai andando pela avenida às três horas da tarde sem um só amigo no mundo mas com duas notas de cinco mil na carteira e várias promissórias na praça. Vai a caminho do Cineac fazer sua hora de 30 minutos com torpezas de Chicago e nus ousados. Seu humor não é grande coisa: acaba de insultar uma senhora que tentava impingir-lhe um bilhete de loteria. Faz calor e ele se sente mal dentro do terno de brim. Se pudesse daria um soco em nossa cara, não podendo passa o lenço pelo rosto como se o quisesse arrancar fora torcer o suor e botar para secar. Vai pela avenida fraco de vida. E vê, na esquina, o camelô. Para, escuta e sossega. Não é o espetáculo que o acalmou, mas sim, o desafio. Um camelô, para ele, é um teste, alguém com quem pode pôr à prova sua argúcia. Instantaneamente seco e bem passado, rosto esperto de quem sabe alguma coisa que todos desconhecem, fica num canto mais exposto à espera que a atenção do vendedor caia sobre ele. E se retesa em negação: é o homem que não compra, que não cai no conto, que não é bobo: nele não passam a perna. Sorri de suas alturas, nota com superioridade que o camelô tem um certo jeito para a coisa, olha com desdém os mais crentes na assistência, vai dar de cara com o “esparro” a apalpar e aprovar o descascador de batata, o cola-tudo, o limpador de metais, o quebra-cabeças. Olha em torno, certificando-se que o “rapa” não está por perto (se estivesse seria o primeiro a dar o aviso, é um homem com fair-play). Com a terceira venda retoma seu caminho com a moral um pouco mais alta. Mais uma vez ele ganhou. Não vai na conversa de ninguém. Ele é fogo, ele é cem por cento.
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Com respeito à arquitetura do Leme, uma coisa me ficou clara: os cachorros preferem as esquinas. Nunca vi uma esquina com tanto cachorro. Hoje de manhã contei seis. Seis cachorros quietos, uns deitados outros com aquela cara estúpida de olhos fechados para o sol e a seis segundos de um bocejo. Deve ser a hora: O sol bate ali, eles o procuram, acham e deitam. São uns cachorros gordos de dono de padaria e açougue, não aborrecem, não dão atenção a assobios nem correm atrás de carro e criança. O pelo desses cachorros oferece brilho singular, deve ser a maresia e a refeição na hora. Mas estão quietos demais para cachorros. Falta alguma coisa. Não dão impressão de liberdade ou irresponsabilidade. Há gravidade nos espaços que deixam entre um e outro. E não se olham, não se farejam, não se estranham. Estão ali como também poderiam não o estar. Tanto faz ser seis ou quatro, ou dois. Estão unidos por um movimento secreto que faz em um todo, uma coisa só. Cães improváveis: súcia, malta, bando. Um coletivo é isso: todos feitos um só. Num homem, está certo, num cachorro, não. Deve ser porque é de manhã. Vai ver de tarde, quando estou pela cidade, eles pulam para cima e para baixo, chateando os outros, latindo para os aviões, fazendo suas cachorradas. E quem sabe como me veem? Quem sabe como nos veem a todos, estes seis cachorros? Parados, sem graça, cheios de movimentos previsíveis, andando e mudando de cara, todos à uma distância respeitosa, uns dos outros, com medo, uns dos outros ‒ e por isso ‒ a se meter na vida sossegada dos cães na esquina.