Hoje, Dia Nacional da Alfabetização, conforme decreto 63.326, de 30 de setembro de 1968, selecionamos alguns exemplos elocoentes ‒ digo, eloquentes ‒ do sucesso da vitoriosa campanha.

Pessoas que até o dia 29 de setembro de 1968, mergulhados até o pescosso ‒ digo, pescoço ‒ nas trevas do analfabetismo, podem agora se gabar da batalha vencida contra a cegueira, a alienação, o porfirismo da Cultura e Educação. Hoje, rejubilemo-nos, sabem do que está havendo. E do que se está devendo.

Vejamos o caso de A.F.F, pedreiro, 45 anos de idade, analfabeto há cinco gerações, que, infelizmente, ele ainda insiste em escrever “gerassões”, um resquício de sua intimidade com uma flor que só dá o que ela tem ‒ três pétalas murchas, uma haste caindo aos pedaços, possivelmente causadora de doenças inomináveis e ignominiosas, muito popular no morro do “Já Nasce Morto”. A.F.F., filho de A. Ph. Ph., é capaz, em suas manhãs a caminho do trabalho, quando não há quebra-quebra ou ejaculatio praecox nos trens apinhados de penduras da Central, de ler a página de crime de O Dia, onde se trava contato com os dramas de bancários assassinados pra não falar sobre desfalque, funcionárias colhidas por kombis em Ipanema, marginais atirados por fuscas embaixo de caminhões de Nova Iguaçu e casos esparsos de meningite.

A.F.F., pedreiro, toma conhecimento ainda, no mesmo órgão, de que o ICM para as empresas terá um curso com a duração de duas semanas, com debates e linguajar técnico.

Mais adiante, com uma certa dificuldade, descobre que a nova consolidação das Leis de Trabalho está em redação final. Esta nota ele lê duas vezes. Quer saber se é com ele. Não chega a uma conclusão. No trem da Central, lendo O Dia, trava conhecimento com o fato de que todos os ônibus da cidade serão pintados com a mesma cor. Ele tem uma ideia vaga do que seja um ônibus. Deve ser coisa de rico, pra ele. Fecha o jornal. Olha pela janela. Tá tudo ruço. Com cedilha. Cedilha só antes de A e de O. E antes do U? Não tem certeza. Mas violência, graças a seus filhos, sempre de venda preta cobrindo os olhos quando pegam foto de jornal, jura que não tem aquele rabinho debaixo do C. Pivete só até os 17 anos. Depois entram noutra. A.F.F., torce pelo Vasco e pela calma reinante no país. Um pouco cabreiro depois que descobriu, graças ao milagre da alfabetização, que há um troço chamado duas refeições por dia. Mas está muito velho pra se aporrinhar com esses troços. A vida é isso aí.

As domésticas aprenderam a anotar recados dados pelo telefone. A letra delas parece rebentação de praias do Norte, bilhete de pai dizendo do desgosto que deram às suas mães. Lombriga desvairada. Mas elas sorriem, quando sozinhas, e ligam um radinho de pilha.

Os malandros conhecem números. De telefone, dos bichos, das chapas de carros suspeitos, dos artigos em que são enquadrados. Advogados vão de cifrão. E sorriem. O objetivo mobralizador é sorrir. Satisfação. União. Coleção O Coyote: “... com um sorriso brincando nos lábios, Rick disparou novamente seu Magnum-44. Os miolos de Guido Campari espalharam-se pela parede do Motel Last Chance...”

Uma exceção: Dias Gomes, dramaturgo, renovador televisador, desmobralizou-se. Não consegue escrever. Certas pessoas não tem jeito. E se ele ditasse para o gravador? O problema deverá ser examinado por pessoas bem vestidas e com trabalho que não acaba mais.

Tininho, desocupado, entendeu a piada publicada no volume Labaredas Sensuais, Editora Kultus, São Paulo. Que vai assim:

“‒ Sim, seu delegado. Eu matei o homem que amava por ciúme.

‒ Explique melhor.

‒ Ele estava dando muita atenção à própria esposa.”

Na Academia Brasileira de Letras, a polêmica continua é Hein ou Hem? Chícara ou Xícara? Chuchu ou Xuxu? 40 andares ou 36?

Mas a maior parte da campanha foi vencida: 3 entre 4 filhos de trabalhadores rurais conhecem de cor e salteado todas as letras que compõem o último elepê de Elton John. O 4º insiste na analfabetização, examinando detidamente o solo, pedras, vegetação, secas, enxadas, pragas e o rosto sem garranchos do homem que, no fim do mês, quer saber como é que vão as coisas.

A esquadrilha da fumaça, nos céus, escreve frases indecifráveis que o vento logo leva.

Os vestibulandos unificados sabem tudo que é preciso saber sobre o que se passa entre as letras A e E. E botam um X do lado da mais provável.

ivan-lessa
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