4 jun 1960

Canto fúnebre do carioca

Periódico
Manchete, n° 424

Publicada nos livros Homenzinho na ventania, de 1962, e O amor acaba, de 1999.

Eu sou o homem-fantasma. Tenho carne, tenho ossos, tenho identidade, mas pertencem ao outro. Sou o detetive do outro, buscando no ar os rastos de meus crimes suaves, caçando nas ruas os vestígios de mim. 

Outrora morei num reino à beira-mar. Rosas floriam no Flamengo, jovens eram os arranha-céus e os telefones, os recados me chegavam do Largo do Boticário, do bar do Palace, do Joá, dos terreiros de Mangueira. Todos me chamavam, todos me queriam. Hoje não moro mais, estou só, curvo, com a minha sombra cobrindo uma última parede a demolir.

Procuro e não encontro os meus verões passados. Havia um Rio transverberado e quente, quase me lembro. E mulheres. Flora, Taís, Heloísa, onde estão as grandes regatas da enseada, os balões de junho, as casuarinas, os móveis de mogno, o gorgorão escarlate, a umbela do viático, as cheganças de Natal, as madrugadas diabólicas do High Life, onde estou eu?

Perdi-me na esquina da rua Gonçalves Dias em 1928, desabei com o morro do Castelo, afoguei-me nos mangues de 35.

Meus parentes emigraram na brisa da boca da noite, meu avô quis proteger meu futuro nos serões de São Cristóvão, meus tios morreram tuberculosos, minha avó virou folha seca do Outeiro da Glória, minha mãe virou pedra em Botafogo, minhas namoradas, baças, desbotadas, foram removidas ex-officio para o planalto de Goiás.

Oh, quase me lembro, e quanto, dos caranguejos e violinos duma noite impermeável, da cocaína elegante, do Alcazar na rua da Vala, das ressacas nos rochedos do Leblon, das resinas aromáticas na igreja da Boa Morte, dos veludos fulvos da Imperial, das tardes olímpicas de São Januário, do gol de Valido, dos meninos que gritavam A Noite, das vésperas de amor, dos crepúsculos engasgados, dos refrigerantes nas calçadas, dos meus chapéus de palha, dos meus bigodes eternos, do meu smoking a refulgir como rosa que se anuncia no espelho do quarto.

Não sei quando nasci. Talvez no tempo dos capoeiras do Monturo, quando o Delfim ficou doido, quando morreu o Nilo. 

Tenho 30? 40? 60? 90? Ou há 495 anos existo? 495 anos de dor e amor, de mar e luar, 495 anos de absurdas luminárias e aspérrima solidão. 

– Às vezes, não eu, mas a cidade, sou a cidade, desfiz-me em todos os acontecimentos da cidade: fui o suicídio de Boca do Mato, o estupro da Floresta da Tijuca, a amendoeira do morro da Viúva, os pardais da amendoeira do morro da Viúva, o capim vadio de Vila Isabel, a rua do Ouvidor com o seu enfado feliz, o mendigo de São Francisco de Paula, o carnaval da Galeria, a rua da Misericórdia com as suas placas orvalhadas, os Arcos, a nave da Candelária com o seu gigantesco defunto, os líquens da palmeira real, o claustro de São Bento, o Livramento, o Arpoador, o morro da Babilônia. Fui a revolta do marinheiro preto, o quebra-quebra, a greve, o grito do estudante, o soluço no Terreiro da Polé, as favelas com seus partos de dor, a faca da fome, a mutilação dos miseráveis, o despertar chuvoso dos subúrbios, o Beco dos Barbeiros, a Saúde, fui coágulo de sangue, porta de necrotério, mão magra de menino negro, barraco derrubado na tormenta.

Estive em todos os pratos vazios, nos cárceres do Estado Novo, estive no desespero de todas as gamboas e ao longo das épocas brancas de cal assombrei os corredores da Santa Casa com os meus uivos, como uiva a lua cheia através das grades de todas as prisões.

Meu pai, meu pobre pai emoldurado desde 1920 num retrato do Passeio Público... Onde estou, meu pai, para onde vou? 

– Não estás nem vais, meu filho: ficas. És apenas o fantasma dum fantasma.

Desfiz-me nas areias que a ventania levantou em 1918, evolei-me no sermão de lágrimas do Carmo, dilui-me nos serenos do Largo da Lapa desapareci com ponto de cem réis, dissolvi-me em vinhos franceses, incendiei-me na cauda do cometa Halley, perdi minha rota nos nevoeiros de setembro, corroí-me nas maresias barra, esvaí-me em tosse, esbati-me em treva, desbaratei-me nas encruzilhadas da macumba, fui mastigado pelos peixes, desintegrei-me numa catástrofe aérea, esfarelaram-me as unhas dos agiotas, atassalharam-me as marretas imobiliárias sufocaram-me os malignos, beberam-me as sanguessugas, roeram-me os caninos dos vereadores, expungiram-me as mãos de ávidas estrangeiras.

Meu pai, meu pai!

– Viraste nuvem, meu filho, viraste chuva, escorreste pelos telhados, pelas calhas, pelas manilhas debaixo da terra, desapareceste para sempre no mar oceano.

paulo-mendes-campos
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