Fonte; As melhores crônicas de Fernando Sabino, Record, 1986, pp.  114-115.

São dez horas da manhã. O carreto que contratei para transportar minhas coisas acaba de chegar. Vejo sair a mesa, a cadeira, o arquivo, uma estante, meia dúzia de livros, a máquina de escrever. Quatro retratos de criança emoldurados. Um desenho de Portinari, outro de Pancetti. Levo também este cinzeiro. E este tapete, aqui em casa ele não tem serventia. E esta outra fotografia, ela pode fazer falta lá.

A mesa é velha, me acompanha desde menino: destas antigas, com uma gradinha de madeira em volta, como as de tabelião do interior. Gosto dela: curti na sua superfície muita hora de estudo para fazer prova no ginásio; finquei cotovelos em cima dela noites seguidas, à procura de uma ideia. Foi de meu pai. É austera, simpática, discreta, acolhedora e digna: lembra meu pai.

Esta cadeira foi presente de Hélio Pellegrino, que também me acompanha desde a infância: é giratória e de palhinha. Velha também, mas confortável como as amizades duradouras. Mandei reformá-la, e tem prestado serviços, inspirando-me sempre a sábia definição de Sinclair Lewis sobre o ato de escrever: é a arte de sentar-se numa cadeira.

— Mais alguma coisa? — pergunta o homem que faz o carreto.

— Mais nada — respondo, um pouco humilhado.

E lá vai ele, puxando a sua carroça, no cumprimento da humilde profissão que lhe vale o injusto designativo de burro-sem-rabo. Não tendo mais nada a fazer, vou atrás.

Vou atrás, cioso das coisas que ele carrega, as minhas coisas; parte de minha vida, pelo menos parte material, no que sobrou de tanta atividade dispersa: o meu cabedal.

Pouca coisa, convenhamos. Mas ali dentro daquele arquivo, por exemplo, vão documentos, originais, cartas recebidas ao longo dos anos, testemunhas do convívio. Vem-me a ideia de que, pobres coisas que sejam, com este mesmo carreto é que subirei um dia para dar conta do que fiz e deixei de fazer cá na Terra. E me esbofarei como um propagandista ambulante, tentando fazer entrar pela porta estreita esta carga que me sobrou da aflição do espírito e que, burro-sem-rabo, teimosamente transporto comigo ao longo da vida até o seu termo.

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