Fonte: As melhores crônicas de Fernando Sabino, Record, 1986, pp. 27-31.

Leio no jornal uma entrevista do autor de Cem anos de solidão. Só que seu nome é Gabriel García Márquez e não Marques, como saiu publicado.  

Não que eu seja lá muito cioso dessas coisas, pelo contrário: meus lapsos ortográficos costumam ser bem mais graves que uma simples troca do z pelo s. Fixei na memória a grafia certa do nome do escritor, não só por ter sido com Rubem Braga o seu primeiro editor no Brasil, mas principalmente por causa daquela sensacional entrevista sobre ele, que dei na época a uma estagiária de um jornal do Rio.

— Me mandaram fazer com você uma entrevista sobre o marquês — e ela foi ligando logo o gravador.

— Que marquês? — estranhei.

— Esse que vocês editaram.

— Não editamos nenhum marquês, que eu saiba.

— O autor desse bestseller de vocês, Cem anos de perdão.

— De solidão.

— Ou isso: de solidão. Ele não é marquês?

— Não. Ele não é marquês. O nome dele é Gabriel García Márquez. Com z no fim. Se duvidar, é capaz de ter até acento no a.

— Então é isso. Foi confusão minha — e ela não se deu por achada, muito menos por perdida, sempre empunhando um microfone junto ao meu nariz: — Por que é que o livro dele está fazendo tanto sucesso?

— Porque é um livro muito bom.

— Foi por isso que vocês publicaram?

Respirei fundo:

— Por isso o que, minha filha? Por ser muito bom?

Ela me olhou como se estivesse entrevistando uma toupeira:

— O que eu estou querendo saber é por que vocês publicaram o livro dele.

— Porque nos foi recomendado como sendo um livro muito bom.

— Recomendado por quem?

— Pelo Neruda.

— Quem?

— Pablo Neruda. Quando ele esteve no Rio pela última vez, falou com o Rubem que se tratava do romance mais importante em língua espanhola desde Dom Quixote.

— Quem é esse?

— Esse quem? O Rubem?

Não: o outro.

Dom Quixote?

— Não: esse cara que você falou antes. O que recomendou o livro.

Resolvi deixar cair:

— Você vai me desculpar, minha filha, mas não dá. A entrevista fica para outra vez, quem sabe. É muita honra para um pobre marquês, mas infelizmente... Ou Márquez, se você não se incomoda. No mais, muito obrigado.

— Eu é que agradeço!

Ela desligou o gravador, com ar satisfeito, despediu-se e foi-se embora.

Tudo depende do nosso ponto de vista em relação ao assunto. O meu era de frente, em relação a esta outra: uma estudante de seus dezoito anos (vestibular do curso de Letras) que vinha a ser um verdadeiro esplendor.

Esplendor de nossa raça, bem entendido: direi em resumo que tinha competência para passar no vestibular do que quisesse, no que dependesse de apresentação física. Sua pele era da cor de sorvete de chocolate, daquele mais claro, mas não tão fria, muito antes pelo contrário, viva e cálida como a de um fruto — cor de jambo, como se dizia antigamente, só que já não me lembro bem da cor do jambo, faz tempo que não vejo um. O rosto era brejeiro, como também se dizia antigamente. E o corpo perfeito como... como...

— Como?

— Eu perguntei o que faz um redator.

Sentada à minha frente, ela deixara o eterno gravador ligado sobre a mesinha entre nós e esperava pela minha resposta, pernas cruzadas, joelhos à mostra. Descruzei as minhas:

— Não entendi bem a pergunta. Antes de mais nada, como é mesmo o seu nome?

— Lindalva — respondeu, com voz de criança.

— Que foi mesmo que você me perguntou, Lindalva?

— Eu perguntei o que faz um redator.

— Um redator? Um redator redige, não é isso mesmo? Mas por que você está me perguntando isso?

Ela descruzou as pernas:

— Você não é um redator?

Cruzei as minhas:

— Bem, de certa maneira... No jornal não sou propriamente um redator, mas um cronista. Ou um colunista, se você prefere. Também redijo, não há dúvida, mas o que eu sou na realidade é um escritor.

— E o que faz um escritor? — ela perguntou então, inalterável.

Meu Deus, ia começar de novo.

— Um escritor escreve — respondi, com um suspiro resignado.

— Não é isso que eu quero saber — reagiu ela, fazendo beicinho.

— Então pergunte o que você quer saber, Lindalva.

— Quero saber o que eu perguntei: o que faz um escritor — e ela tornou a cruzar as pernas.

Descruzei as minhas. Eu já lhe mostro o que faz um escritor:

— Um escritor é um sujeito que só sabe perguntar e não responder a perguntas. Ainda mais perguntas como essa.

De repente entendi:

— Ah, você está querendo saber não a função que exerce um escritor, mas as qualidades intrínsecas que fazem de uma pessoa um escritor, não é isso mesmo?

— Isso mesmo: o que é que faz um escritor?

— As qualidades intrínsecas — arrematei.

— Qualidades o quê?

— Intrínsecas.

— Ah, sei...

Ela mostrou os dentes, abrindo os lábios num sorriso.

Pensou um pouco, e não lhe ocorrendo mais nada a perguntar, desligou o gravador, dando a entrevista por encerrada.

Chegou a minha vez de perguntar:

— Que faz uma pessoa como você, Lindalva?

— Como eu, como?

— Como eu como?

Cruzei as pernas, sem que ela descruzasse as suas:

— Estou querendo dizer é que acho surpreendente uma moça como você perdendo tempo em me entrevistar.

Acompanhei-a até a porta:

— Por que não entrevista o Sargentelli, do Oba-Oba? Você tem futuro.

— Ele também é escritor?

Disse-lhe que não: a escrita dele era outra.

— Gosto muito dos seus escritos — concedeu ela, com um trejeito.

— E eu dos seus.

— Dos meus escritos?

— Dos seus encantos — emendei.

— Então tá — e ela estendeu o rosto me oferecendo a face, muito faceira, para um beijo de despedida.

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