Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 29/09/1961.
Não foi há muito tempo: dois meses. Mas não gosto de conservar, ainda hoje, aquela emoção. No entanto, aqui está ela; impossível negá-la. Tudo corria tão bem, e eis que sem qualquer motivo a pequena aflição, incômoda como uma dor de cabeça, nem muito forte nem muito fraca, mas persistente — ei-la situada atrás dos meus olhos. Desisto — ninguém foge à própria consciência: passo, portanto, a interrogá-la.
Sabia eu, naquele instante mesmo, que não estava agindo bem. Não que estivesse agindo mal: simplesmente me omitia. Considerei que minha alma gostaria de eliminar aquele inesperado elemento. “Consideremos — dizia a mim mesmo - que nada aconteceu; exceto a luz da manhã que acende com maior brilho as folhas das árvores. Consideremos que foi apenas a nuvem que mudou de lugar no céu”.
Embora não me agrade ficar o tempo todo fazendo confidências, devo dizer que me interesso fervorosamente pelo sofrimento dos meus semelhantes. O drama é o meu elemento. Porém, naquela ocasião, era eu próprio um elemento desse drama. Estava magoado: de tanto prestar atenção nos outros, esquecera-me de mim mesmo, dos meus interesses, dos meus sonhos pessoais. E justamente naquele dia me encontrava em Belo Horizonte, prosseguindo uma viagem que me permitia pensar com mais calma na minha própria vida. Descansava: não lia jornais, passeava pelos mercados, praticamente não falava com ninguém. Então, diante do sofrimento, quem em meu lugar não fingiria ter visto uma nuvem mudar o seu desenho, a folhagem balançar docemente, o sol fazer um diamante com o caco de vidro lançado na sarjeta? Mas isto é fogo: se é sempre possível esperar compreensão dos outros, nem sempre a nossa consciência está disposta a imitá-los - e aqui está, dois meses depois, intacta, a pequena dor que eu havia procurado negar.
Era um belo dia. Creio que em nenhuma outra cidade brasileira as manhãs se oferecem tão belas e agradáveis como em Belo Horizonte. Muitos anos antes eu havia passado por lá, e agora reconhecia a tonalidade e a temperatura da manhã mineira. Então, contra a minha vontade, olhei para um lado - ou melhor, pensei que se olhasse para certo lado da rua não correria qualquer perigo. Vi então a mulher, a negra velha, com a carapinha branca, calçando um par de sapatos velhos de homem. Naquele instante encontrara duas caixas de papelão e se erguia da sarjeta com uma caixa em cada mão. Vi um rosto largo e sofrido: um nariz esborrachado, uns olhos que não sei de que cor poderiam ter sido, mas que naquele dia não possuíam cor alguma. Ei-la então lançando para mim aquele olhar de fumaça, no qual julguei discernir uma amargura imensa, além de incalculável hostilidade para comigo e, em suma, para com o mundo. Era uma figura triste, velha, largada, a blusa em farrapos e uma úlcera na perna. Lembro-me bem: olhei-a com simpatia enquanto pensava que desde certo tempo, pelo menos entre as pessoas bem informadas, era impossível contemplar uma catadora de papel sem certa simpatia misturada a um grande respeito. Aquela mulher humilde bem que poderia estar escrevendo um diário… Mas enquanto eu assim pensava, sorrindo com os olhos, as duas caixas lhe caíram das mãos. Depois ela própria caiu, com as mão erguidas, e bateu surdamente no chão. O olhar brumoso paralisado. Os pés longe dos sapatos de homem. E começou a tremer, como quando num terreiro se recebe um santo.
“Consideramos — dizia eu a mim mesmo — que foi apenas uma nuvem que o vento soprou”. Uma nuvem. A luz nas folhas. Nada mais. Que tenho eu a ver com essas negras velhas que desmaiam no meio da rua? Além do mais, não sou daqui: e além do mais meu próprio coração quebrou-se e ninguém ouviu. E fui andando no meio da luminosa manhã.
Passaram-se dois meses. Passará talvez uma vida sem que me esqueça. Ou então, daqui a vinte anos, alguma coisa — um perfume de dor — subirá aos olhos muito experimentados, e eu direi: “seja o que for, provavelmente não quer dizer nada. O vento soprou a nuvem no céu, talvez”.