Foi um poeta que considerou as tabuletas — os brasões da rua. As tabuletas não eram para a sua visão apurada um encanto, uma faceirice, que a necessidade e o reclamo incrustaram na via pública; eram os escudos de uma complicada heráldica urbana, do armorial da democracia e do agudo arrivismo dos séculos. Desde que um homem realiza a sua obra — a terminação de uma epopeia ou a abertura de uma casa comercial — imediatamente o homem batiza-a. No começo da vida, por instinto, guiado pelos deuses, a sua ideia foi logo a tabuleta. Quem inventou a tabuleta? Ninguém sabe.
É o mesmo que perguntar quem ensinou a criança a gritar quando tem fome. Já no Oriente elas existiam, já em Atenas, já em Roma, simples, modestas, mas sempre reclamistas. Depois, como era de prever, evoluíram: evoluíram de acordo com a evolução do homem, e hoje, que se fazem concursos de tabuletas e há tabuletas compostas por artistas célebres, hoje, na época em que o reclamo domina o asfalto, as tabuletas são como reflexos de almas, são todo um tratado de psicologia urbana. Que desejamos todos nós? Aparecer, vender, ganhar.
A doença tomou proporções tremendas, cresceu, alastrou-se, infeccionou todos os meios, como um poder corrosivo e fatal. Os próprios doentes também a exploram numa fúria convulsiva de contaminação. Reparai nos jornais e nas revistas. Andam repletos de fotogravuras e de nomes — nomes e caras, muitos nomes e muitas caras! A geração faz por conta própria a sua identificação antropométrica para o futuro. Mas o curioso é ver como a publicação desses nomes é pedida, é implorada nas salas das redações. Todos os pretextos são plausíveis, desde a festa a que se não foi até à moléstia inconveniente de que foi operada com feliz êxito a esposa. O interessante é observar como se almeja um retrato nas folhas, desde as escuras alamedas do jardim do crime até às garden-parties de caridade, desde os criminosos às almas angélicas que só pensam no bem. Aparecer! Aparecer!
E na rua, que se vê? O senhor do mundo, o reclamo. Em cada praça onde demoramos os nossos passos, nas janelas do alto dos telhados, em mudos jogos de luz, os cinematógrafos e as lanternas mágicas gritam através do écran de um pano qualquer o reclamo do melhor alfaiate, do melhor livreiro, do melhor revólver. Basta levantar a cabeça. As tabuletas contam a nossa vida. E nessa babel de apelos à atenção, ressaltam, chocam, vivem estranhamente os reclamos, extravagantes, as tabuletas disparatadas. Quantas haverá no Rio? Mil, duas mil, que nos fazem rir. Vai um homem num bonde e vê de repente, encimando duas portas em grossas letras estas palavras: Armazém Teoria.
Teoria de que, senhor Deus? Há um outro tão bizarro quanto este: Casa Tamoio, Grande Armazém de líquidos comestíveis e miudezas. Como saber que líquidos serão esses comestíveis, de que a falta de uma vírgula fez um assombro? Faltou a esse pintor o esmero da padaria do mesmo nome que fez a sua tabuleta em letras de antigo missal para mostrar como se esmera, ou talvez o descaro deste outro: o maduro cura infalivelmente todas as moléstias nervosas...
Mas as tabuletas extravagantes são as do pequeno comércio, sem a influência de Paris, a importação direta e caixeiros elegantes de lenço no punho: as vendas, esta criação nacional, os botequins baratos, os açougues, os bazares, as hospedarias... Na rua do Catete há uma venda que se intitula O Leão na Gruta. Por quê? Que tem a batata com o leão que nem ao menos é conhecido de Daniel? Defronte dessa venda há, entretanto, um café que é apenas Café de Ambos Mundos. E se não vos bastar um café tão completo, aí temos um mais modesto, na rua da Saúde o Café B.T.Q. E sabem que vem a ser o B.T.Q., segundo o proprietário? Botequim pelas iniciais! Essa nevrose das abreviações não atacou felizmente o dono da casa de pasto da rua de S. Cristóvão, que encheu a parede com as seguintes palavras: Restaurant dos Dois Irmãos Unidos Por...
Unidos por... Pelo quê? Pelo amor, pelo ódio, pela vitória? Não! Unidos Portugueses. Apenas faltou a parede e ficou só o por — para atestar que havia boa vontade. A questão, às vezes, é de haver muita coisa na parede. Assim é que uma casa da rua do Senhor dos Passos tem este anúncio: Depósito de aves de penas. É pouco? Um outro assegura: Depósito de galinhas, ovos e outras aves de penas — o que é, evidentemente, muito mais. Tal excesso chega a prejudicar, e andasse a higiene a olhar tabuletas, ofício de vadiagem incorrigível, mandaria fechar uma casa de frutas da Rua Sete, que pespegou esta inconveniência: Grande sortimento de frutas verdes e secas.
A origem desses títulos é sempre curiosa. Uma casa chama-se Príncipe da Beira porque o seu proprietário é da Beira, uma venda de Campo Grande tem o título feroz de Grande Cabaceiro porque perto há uma plantação de cabaças; há açougue Aliança e Fidelidade porque é um hábito pôr aliança como título com duas mãos apertadas e fidelidade com um cachorro de língua de fora, bem no meio da parede. Muitos tomam o título de peças de teatro: Colchoaria Rio Nu, Casa Guanabarina, venda Cabana do Pai Tomás. A coisa, porém, toma proporções assombrosas quando o proprietário é pernóstico. Assim, na rua Visconde do Rio Branco há um armazém Planeta Provisório, e noutra rua Planeta dos Dois Destinos, um título ocultista sibilino; no Catete, um Açougue Celestial. Essa dependência do firmamento na terra produz um péssimo efeito e os anjos têm cada braço de meter medo a uma legião da polícia. Outro, porém, é o Açougue Despique dos Invejosos, e há na rua da Constituição uma casa de bilhetes intitulada Casa Idealista, naturalmente porque quem compra bilhetes vive no mundo da lua, e há uma casa de coroas, o Lírio Impermeável e uma outra, Ao Vulcão das 49 Flores. Não é só. Uns madeireiros puseram no seu depósito este letreiro filosófico, que naturalmente incomodará o arcebispado: Madeireiros e Materialistas; e há uma taberna muito ordinária, centro de malandrões, em Sapopemba, que se apossou de um título exclusivamente nefelibata: A Tebaida...
E os afrancesados que denominam as casas de Au Bijou de la Mode; Au Dernier Chic, Queima Chefe, Maison Moderne da Cidade Nova? E os patrióticos que fazem questão da casa de pasto ser 1º de Dezembro, do açougue ser 1º de Janeiro? do restaurante ser Luís de Camões ou Fagundes Varela? E os engrossadores que intitulam as casas de Afonso Pena durante quatro anos? E os engraçados, os da laracha boa, que fazem as tabuletas propositalmente erradas, como um negociante da rua Chile: Colxoaria de primera Colxães contra purgas e precevejos?
Mas as tabuletas têm uma estranha filosofia; as tabuletas fazem pensar. Há, por exemplo, na rua Senador Eusébio, perto da ex-ponte dos Marinheiros, uma hospedaria com este título: Hotel Livre Câmbio. Quanta coisa pensa a gente conhecendo o negócio e olhando a tabuleta!
A série é nesse ramo curiosíssima. Há o Locomotora, que é naturalmente rápido; há Os Dois Destinos, há a Lua de Prata, há o irônico Fidelidade, tendo pintado uma senhora a pender dos lábios de um senhor... Quantos!
Na rua Dr. João Ricardo há um restaurante com este título: Restauração da Vitória.
— Por que “restauração da vitória”? — indagamos do proprietário, o sr. Colaço.
— Eu explico — diz ele. — Há cerca de trinta anos, os espanhóis invadiram a ilha Terceira. Como eram poucos os soldados para repelirem o castelhano, os lavradores soltaram todos os touros bravos na praia da Vitória e dessa maneira os espanhóis fugiram. Os paraguaios resistiram também tanto tempo por causa dos touros importados da Argentina.
— Tudo tem uma explicação neste mundo!
— All right!
All right, sim! Os títulos das casas, por mais absurdos, como Filhos do Céu, por exemplo, têm uma explicação que convence. Há os nefelibatas, os patrióticos 1º de Janeiro, D. Carlos; o diplomático União Ibérica, os que engrossam uma certa classe, e até um, na rua Frei Caneca, pertencente ao riquíssimo Pinho, cujo título é uma profunda lição filosófica. O hotel intitula-se Comércio e Arte...
Os pintores desse gênero criaram uma especialidade: são os moralistas da decadência e usam também tabuletas. Um mesmo, talvez por ter sofrido muito de cara alegre, pôs na rua de S. Pedro este anúncio: Fulano de Tal, Pintor de Fingimentos. E realmente eles aturam tanto dos proprietários! Um deles, rapazito inteligente, era encarregado de fazer a fachada da Casa do Pinto. Fez as letras e pintou um pintainho. O proprietário enfureceu:
— Que tolice é esta?
— Um pinto.
— E que tenho eu com isso?
— O senhor não é Pinto?
— O meu nome é Pinto, mas eu sou galo, muito galo. Pinta aí um galo às direitas!
E outro, encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis já pintara “vendem-se móveis”, quando o negociante veio a ele:
— Você está maluco ou a mangar comigo!
— Por quê?
— Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se... Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o “m”, ande!
As letras custam dinheiro, custam aos pobres pintores... O rapaz ficou sem o “m” que fizera com tanta perícia. Mas também, por que estragar? Em S. Cristóvão havia uma Pharmácia S. Cristóvão. Desapareceu. Foi a primeira que fez isso na terra, desde que há farmácias. Foram para lá outros negociantes. Como aproveitar algumas letras? Lembraram “foco”, e, como a Academia não chega os seus cuidados ortográficos às tabuletas, arrumaram Phoco de S. Cristóvão. Estava uma tabuleta nova só com três letras novas.
Os pintores de tabuletas resignam-se. Eles, os escritores desse grande livro colorido da cidade, têm a paciência lendária iluministas medievos, eles fazem parte da grande massa para que o Reclamo foi criado — são pobres. Talvez por isso, um mais ousado, de acordo com certo açougueiro antigo da praça da Aclamação: pintando uma vez o letreiro Açougue Pai dos Pobres, pôs bem no meio uma cabeça de boi colossal, arregalando os olhos, que Homero achava belos, como o símbolo de todas as resignações...
E é decerto este o lado mais triste das tabuletas — brasões da democracia, escudos bizarros da cidade.