Fonte: Um cartão de Paris. Seleção e organização de Domício Proença Filho, Record, 1997, pp. 88-90.
Era um desenho medíocre, feito com tinta azul em um papel muito alvo. Representava um objeto banal em todo quarto de Paris, um aquecedor. Arrumando seus papéis, o homem jogava fora muitas cartas, muitos rabiscos, um mundo de coisas inúteis.
Quando viu o desenho, pensou também em jogá-lo fora; uma semana depois viu, entretanto, distraidamente, que não o fizera. Dias depois, como fosse mudar de quarto de hotel, deparou outra vez aquele desenho sem graça. Amarrotou-o com a mão e ia lançá-lo na cesta quando alguém o chamou ao telefone.
No quarto novo, abrindo uma gaveta, achou aquele papel meio amarrotado e foi ver o que era. Então, ao dar com o pobre desenho, compreendeu por que resistira inconscientemente à ideia de se desfazer dele.
Lembrou o momento em que o fizera. Estava sentado numa poltrona, conversando com uma pessoa que estava sentada na cama. A presença daquela mulher o perturbava um pouco; entretanto conversavam assuntos indiferentes. Foi naquele momento que fez o desenho, pois tinha na mão a caneta que tirara do bolso para escrever um endereço. Certamente evitava olhar de frente a mulher: em vez de fixar a amiga, que o perturbava, fixava aquele objeto, e o foi desenhando. A atenção que dava às retas e curvas do aquecedor era certamente uma defesa contra sua vontade de olhar de frente a moça cuja presença forte, bela, animal, dentro do quarto, naquela visita puramente cordial, o constrangia.
Sabia que seria estúpido se tentasse sair daquele tom de conversa neutro. Sabia que não despertava o menor interesse naquela moça. Fugia, meio consciente, meio inconscientemente, daquele sentimento de que estava a seu lado em um quarto. Uma cama grande, um vaso de flores e folhas, a janela dando para as pequenas chaminés de uma série de telhados escuros, em três ou quatro planos. Desenhara apenas o aquecedor, o objeto mais prosaico, mais sem graça, mais impessoal. Qualquer outra coisa no quarto, mesmo a paisagem lá fora, falaria mais da moça, de seus olhos, de sua mão, de suas pernas, dos joelhos fortes, de seu jeito de arrumar e desarrumar as coisas, de sua respiração próxima. O aquecedor era igual a todos, de todos os quartos de hotel.
Vendo as linhas inábeis daquele desenho feito semanas antes, o homem sentia aquele mesmo sentimento confuso de desejo e contenção. O desenho, aplicado e laborioso, ainda que malsucedido, era ao mesmo tempo evasivo e carregado em emoção. Um canto daquele quarto, onde estava aquela mulher forte e apetecível, ao alcance de sua mão, aquela mulher que entretanto o desprezaria se ele a olhasse como sentia vontade de olhar — como olhava, em sua forma geral e em todos os seus detalhes, o aquecedor.
Mistura de humildade e orgulho, aquele desenho. Nenhum valor de arte certamente, mas um recado de sua própria vida, um recado hipócrita e frio, entretanto comovente na sua melancolia.
Agosto, 1990