Fonte: O homem nu, 24ª ed., Record, 1984, pp. 158-161.

Veio da Espanha para o Brasil como emigrante em 1911. Começou trabalhador braçal, deu duro na vida e acabou corretor de terrenos. Vivia estudando religião. Um dia, em 1938, um anjo lhe apareceu e disse:

— Tu vais sofrer um desastre desgraçado, velhinho. Mas te aguenta aí que ainda não será desta vez.

Comunicou à mulher a visão que tinha tido, tranquilizou-a como pôde e saiu à rua. Sofreu um desastre de automóvel, ficou 14 dias em estado de coma, mas não morreu, como o anjo dissera.

Outra vez, e isso já em 1956, o anjo tornou a aparecer:

— Como é lá, meu chapa, te prepara para outra, mas ainda não será desta vez.

— Quando é que será? — Perguntou ele, já meio chateado.

— Quando você fizer 66 anos. Até lá, pode ficar descansado.

— No dia 25 de março de 1959, então — ele retrucou rapidamente, antes que o anjo desaparecesse: — Posso saber as horas?

— Anjo não usa relógio, o que é que há? 

— A hora em que vou morrer — esclareceu ele.

— Se você faz questão: às duas e meia da tarde.

Sofreu um ataque do coração quando vendia um terreno, e não morreu. Mas esteve entre a vida e a morte — tranquilizava a todos que se preocupavam com a sua saúde — a mulher, a filha, os vizinhos:

— Não tem perigo: vou morrer no dia 25 de março de 1959 às duas e meia da tarde, o anjo disse.

— Anjo? Que anjo?

A palavra se espalhou pelo bairro que Pérez, o espanhol, tinha visto um anjo. Os curiosos vinham visitá-lo:

— Como é que foi isso, seu Pérez? O anjo não disse nada pra nós? Como é que ele era?

— Para vocês não disse nada, mas se quiserem posso apurar, da primeira vez que ele me aparecer de novo.

E deslumbrava a todos, repetindo sempre a sua história, descrevendo as feições do anjo:

— Meio caladão, mas não é mau sujeito.

O tempo foi passando e o espanhol ganhava prestígio nas redondezas. Cada um tinha uma pergunta, uma lembrança, uma encomenda para quando o anjo reaparecesse.

— Deve andar por aí, qualquer hora dessas ele aparece.

No dia marcado, passou a manhã em preparativos. Despediu-se de todos, deixou em ordem seus papéis, dispôs de suas coisas e desde meio-dia ficou aguardando a visita do anjo.

— Convém você arranjar uma vela para acender na hora — preveniu à filha. Já está tudo arrumado?

Acertou o relógio e deitou-se na cama. Lá fora os vizinhos se agrupavam esperando o desenlace, a multidão ia aumentando. Vinte minutos depois das duas o espanhol se ajeitou na cama para morrer. O quarto foi invadido de gente, repórteres, fotógrafos:

— Caramba, quanta gente! Assim é capaz até dele se espantar — dizia rindo, e acrescentava que não daria trabalho a ninguém, seu destino estava selado, morreria às gargalhadas para que ninguém ficasse triste. E às duas e meia quedou-se imóvel, aguardando a morte. Lá fora a multidão inquieta, na expectativa:

— Está na hora.

Fez-se silêncio e todos esperavam, contritos, que o espanhol morresse. E ele ali firme, na cama, já em postura de defunto, pernas esticadas e dedos cruzados:

— Minha filha, acende a vela de uma vez.

A filha acendeu a vela e nada. Faltavam 20 para as 3 e nada de anjos nem de coisa nenhuma.

— Com certeza não pôde entrar com tanta gente aí fora — aventurou alguém.

— Vamos esperar mais 15 minutos. Meia hora de tolerância, afinal de contas já esperei tanto tempo.

Mas o povo não queria saber de esperar e os primeiros sinais de impaciência se manifestavam:

— Como é, morre ou não morre? 

— Se não morrer agora ele vai se dar mal.

Alguns, mais afoitos, subiam às janelas e a multidão apupava, ameaçando apedrejar a casa.

— Mais 15 minutos, gente — pedia o espanhol, já aflito. — Tenham um pouco de paciência...

Às 4 horas da tarde ninguém queria mais saber de esperar:

— Se é pra morrer mesmo, a gente apressa o serviço.

Os mais revoltados já se dispunham a invadir a casa para dar cumprimento à previsão do anjo:

— Agora ele tem obrigação de morrer. 

— Para aprender a não fazer a gente de besta. 

— Mata! Lincha!

Alguém acabou chamando a radiopatrulha. Uma só guarnição não bastou para enfrentar a fúria dos manifestantes, abrir caminho e dar proteção ao homem.

— Já que o senhor não morreu, convém descansar numa casa de saúde — sugeriu diplomaticamente um dos guardas.

Tiveram de levá-lo, porque a multidão enfurecida queria acabar logo com a sua raça.

— Caramba! — Dizia ele, apreensivo: — Assim também não.

Teve de mudar-se para outro bairro, embora a contragosto:

— Contar com anjo brasileiro dá é nisso — resmungava.

fernando-sabino