Fonte: Fernando Sabino: obra reunida, Nova Aguilar, 1996, pp. 310-312. Publicada, originalmente, em A cidade vazia, O Cruzeiro, 1950.
O caso do charuto pode ser assim resumido:
Um homem entrou no elevador do Chrysler Building fumando um charuto. O termo fumar talvez não seja o mais condizente com precisão dos fatos a que a veracidade do caso me obriga. Para ser exato, tenho de acrescentar que ele não fumava propriamente o charuto, pois acabara de comprá-lo, e, embora já aceso, segurava-o na mão. Mas como um charuto aceso na mão revela inequivocamente a intenção por parte do dono da mão de fumá-lo, digamos logo que ele fumava o charuto, já que de nossa parte a intenção é resumir.
Assim, o ascensorista o advertiu, depois de já ter dado a partida, que era proibido fumar no elevador. O desconhecimento dessa proibição revelava no pretenso fumante mais do que uma natureza distraída ou rebelde: revelava uma completa ausência de espírito cívico, deixando de cumprir o seu dever para com a comunidade. A comunidade em questão era uma italiana do Bronx com chapéu de nobre plumagem, um panamenho recém-chegado e transviado que procurava sua Repartição Consular justamente onde ela não estava e um senhor gordo e baixinho que, consciente dos referidos deveres, se desvencilhara do cigarro antes de entrar no elevador. Este último era realmente um autêntico exemplar disso que os meus possíveis leitores hajam por bem daqui por diante chamar de american citzen, ou seja: um homem que não fuma nos elevadores, cinemas, lojas, teatros, subways, trens, estações, consultórios, museus, bibliotecas, ônibus, não já pelo medo de provocar incêndio, mas simplesmente porque é proibido. Grande virtude essa, se nos lembrarmos das vaias, assobios e baforadas de cigarro com que nos cinemas do Rio costumamos receber o aviso na tela proibindo o cigarro, os assobios e as vaias.
Mas voltando ao caso do charuto: o dono dele, verdade seja dita, não tinha intenção nenhuma de contrariar a lei; apenas acabara de acender o charuto, esperando o elevador, quando se viu de repente ante o terrível dilema de perder um pelo outro, e acabou ficando com os dois. É verdade que não fumou no elevador, procurando segurar o charuto entre os dedos o mais discretamente que lhe foi possível. Mas, como já disse, um charuto na mão revela inequivocamente etc., etc., e assim sendo o ascensorista não teve conversa:
— É proibido fumar no elevador — advertiu pela segunda vez, com a autoridade que lhe dava sua nobre função de ascender os outros.
Bem, isso não era novidade — mas o que é que ele queria que o homem fizesse? Tais casos não são previstos pela administração do edifício, que não coloca cinzeiros nos seus elevadores. Atirar o charuto no chão e pisar, negando a raça através da fumaça como no samba de Noel Rosa, era impraticável: tratava-se de um chão de elevador, o que possivelmente queria dizer a infração de outra lei.
Não queria dizer nada disso: queria dizer que o homem ia perder o seu charuto. Daí ele tentar argumentar:
— Então o senhor devia ter me avisado antes de dar a partida. Agora, jogar no chão é que não posso.
Nemo de jure ignorare censetur etc., etc. O ascensorista parou o elevador entre os andares:
— O senhor faça o que quiser. Só digo que é proibido fumar.
O homem resolveu apelar para as sutilezas:
Não estou fumando: fumar exige o concurso do charuto e da boca. Estou segurando um charuto, o que é muito diferente. A lei diz que é proibido segurar charuto no elevador?
E o ascensorista inflexível. Que o homem guardasse o charuto no bolso, engolisse o charuto, fizesse o que melhor lhe parecesse. Sem o que, ele não subiria. Distraído pelos próprios argumentos, o homem, em vez de se desfazer do charuto, tirou dele uma baforada. Foi o bastante para generalizar-se a confusão. A senhora do Bronx resolveu intervir, alegando raivosamente que ela não tinha nada com aquela história e queria subir. O panamenho, como se estivesse no mundo da lua, perguntava em vão e em mau inglês em que andar era o Consulado do Panamá. O gordinho gritava que aquilo era um desaforo etc., etc. E o elevador parado. O dono do charuto levou-o novamente à boca, para ter as mãos livres e poder se explicar, provocando indignação geral. Então o gordinho, fora de si, estendeu o braço para com uma tapa derrubar o charuto, resolvendo assim a questão. Acontece, porém, que seu gesto foi mal calculado e o que ele deu foi um bofetão na cara do homem. O charuto saltou no ar, largando brasa para cima do panamenho, que até então não entendia coisa nenhuma. Este rebateu-o para cima da senhora do Bronx, e o charuto foi aninhar-se entre as penas do gigantesco chapéu. É evidente que a estas alturas o homem já reagia contra o gordinho, que, além de receber de volta o bofetão, pisou no pé da senhora e recebeu uma certeira bolsada que lhe partiu os óculos. O chapéu começou a fumegar, e por causa disso a bolsa funcionou para cima do panamenho também. O ascensorista pedia calma, aos gritos, tentando apaziguar os ânimos e restabelecer a ordem etc., etc.
Foram todos parar na polícia, no mesmo dia. O ascensorista deu queixa contra o dono do charuto. O dono do charuto deu queixa contra o gordinho. O gordinho deu queixa contra a senhora, que lhe partira os óculos. E a senhora não teve jeito senão dar queixa contra o panamenho, que lhe queimara o chapéu etc., etc. No dia seguinte era o juiz:
— Bem — começou o ilustre magistrado, depois de indagar o nome e a profissão de um por um: — o senhor aí. Fumava um charuto no elevador, não é assim?
— Não, excelência: eu conduzia um charuto no elevador.
— Conduzia um charuto? Para onde?
— Para o oitavo andar.
E o panamenho:
— Eu não tenho nada com a história. Eu ia para o Consulado do Panamá.
— Se o senhor ia para o Consulado do Panamá, o que é que estava fazendo naquele edifício?
O homem do charuto não se conformava:
— Eu queria saber é se Churchill, quando veio aqui, foi obrigado a jogar fora o charuto para entrar no elevador.
Sujeito rebelde! De entrada o juiz o multou em dois dólares. Depois foi a vez da mulher: receberia indenização pelo chapéu, mas teria, por sua vez, de indenizar o gordinho, pelos óculos quebrados. E o ascensorista? Ah, o ascensorista! Que se faça ouvir a voz da Justiça:
— Dois dólares por ter parado o elevador entre os andares, contribuindo para complicar a situação.
O homem do charuto, resignado, apontou ainda para o gordinho:
— Pago o chapéu da mulher, mas este homem tem ao menos de me pagar outro charuto.
Reparação por perdas e danos: o juiz considerou justa e concedeu deferimento. A mulher reclamava ainda que não havia dinheiro que pagasse o seu rico chapéu. O ascensorista reclamava contra possíveis represálias de seus patrões. O panamenho reclamava por não conhecer ainda os costumes de Nova York. Mas o juiz, tendo de passar ao julgamento seguinte, bem mais importante, de dois sujeitos que haviam dado falso alarma de incêndio só para fazer movimento e que esperavam pacientemente a sua vez, resolveu dar o caso por encerrado. Mandou o ascensorista para o elevador, a mulher para o inferno e o panamenho para o Consulado do Panamá. O que sem dúvida prova que nem sempre a justiça americana etc., etc.