Periódico
Manchete

Publicada no livro O mais estranho dos países, de 2013.

Sempre impliquei com a denominação de barnabé — dada talvez com uma intenção complacente ao funcionário público. Acho também impertinente quando dizem: “Ela é uma professorinha”! Quem trabalha com palavras sabe que barnabé tende a esvaziar a dignidade do funcionário civil, significando apenas pobre coitado; do mesmo modo, o professorinha tende a reduzir o problema de uma classe em um suspiro de pena. Ora, não interessa a ninguém e nada resolve sentir compaixão pelo funcionário ou pela professora pública: se essas duas classes padecem hoje no Brasil de aflições específicas, o jeito é encará-las de frente e com dignidade.

Mas que aflições são essas? Em tese, acontece o seguinte: o funcionário público, antes de mais nada, qualquer que seja a sua categoria funcional, qualquer que seja o seu ordenado é a pessoa que vive acima de suas posses. Ou abaixo de suas necessidades. Ele não é a criatura que tomou um bonde errado, mas a criatura que tomou um bonde cujo itinerário foi alterado. Sem poder apear do veículo, ele vai seguindo em direção ao imprevisível cada vez mais aflito. Porque não reclama do motorneiro ou do condutor? Porque, no caso do funcionalismo público, o motorneiro e o condutor, isto é, as autoridades imediatas sobre os passageiros, estão apenas cumprindo ordens e nada podem fazer. Um funcionário de empresa particular pode a qualquer instante pedir reajustamento de salário: se o funcionário público fosse à mesa do chefe e fizesse o mesmo, a sua sanidade mental seria posta em dúvida. Um funcionário de empresa particular muitas vezes anda tão magro ou tão malvestido que o seu drama pode saltar até aos olhos do patrão. Já o funcionário público, além de não lhe ser permitido andar malvestido, pode ir emagrecendo até sumir, que nenhuma providência poderá ser encaminhada a seu favor.

Tudo isso é miúdo e triste — que se há de fazer? O funcionalismo é uma classe acuada, uma classe que naufragou na travessia e se recolheu em frangalhos a uma ilha deserta. O funcionalismo deixou de ser o grande quadro do poder executivo: passou a ser uma cifra na balança orçamentária. Ontem, o funcionário público era a vítima da inflação; hoje, ele paga para a deflação. Não é mais um ser humano: é um número. Não há planos para resolver seu problema: ele passou a ser considerado o problema. Virou até mesmo bode-expiatório, e isso chega a ser engraçado; pois, embora não caiba ao funcionalismo aumentar a produção, a exportação, a renda, enfim, é sobre ele que se tem lançado a culpa de ter o país uma despesa muito grande e uma receita muito curta. Como se pudéssemos culpar a nossa cozinheira pelo fato de não termos os recursos suficientes para pagar-lhe o ordenado.

Essa desagregação do funcionalismo público é coisa que vem se processando lentamente nas últimas décadas. Minha geração ainda se lembra do tempo em que havia uma carreira de funcionário. Hoje o funcionário é exatamente aquilo que uma instituição de beneficência chama de pobreza envergonhada. É a criatura que dorme mal, acorda mal, come mal, diverte-se mal, sem poder educar os filhos como gostaria, sem ter ao menos onde poder passar férias calmas e tranquilas. A continuar assim, o funcionário acaba mesmo virando barnabé — coitado.

paulo-mendes-campos
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