Periódico
Manchete

Publicada nos livros Anjo bêbado, de 1969, e O mais estranho dos países, de 2013.

Quem tem ouvidos, ouça. Nove, dez, 11 horas, meia-noite, pouco importa. É a hora em que os brasileiros vão dormir. Escuta o formidável silêncio, entrelaçado de casa a casa, de rosto a rosto. Preste mais atenção: é a hora em que os brasileiros dormem. Mas os brasileiros não estão dormindo. Estão insones e secos, estirados em catres e redes, camas de ferro, leitos de madeira e aço, colchões de espuma de borracha. Não ressonam, estão de olhos abertos, como bichos no escuro do mato. Não dormem, pensam. Pensando na morte? Há muito que os brasileiros não pensam mais na morte. Compondo fantasias sensuais? Há muito que a nação perdeu o erotismo. Lembrando tempos passados? O passado deixou de existir.

A fumaça de cigarros e cachimbos abafa os quartos, onde os brasileiros pensam, de olhos vermelhos, músculos doídos, olhos acesos. Na Amazônia, no Nordeste, nos descampados do Oeste, na região Centro-Sul de nosso dissipado orgulho industrial, os brasileiros estão insones e pensam com uma fatalidade triste e estúpida. Há muito que se esqueceram do tricampeonato que não veio. Há muito que não esperam qualquer vitória particular ou coletiva. Pensam, mas nem chegam a buscar uma solução do pensamento. É um pensamento espesso e pesado como uma pedra; e significa humilhadamente isto: Onde vou arranjar o dinheiro?

Onde vou arranjar o dinheiro? Hoje, quem não pensa isso, insone e duro, está naturalmente desligado da difusa comunidade brasileira. Não tem nada com o imenso resto da realidade coletiva. Onde vou arranjar o dinheiro?

Ricos, remediados e pobres pensam todas as noites, olhos acesos, quarto enfumaçado: Onde vou arranjar o dinheiro? Industriais, industriários, comerciantes, comerciários, fazendeiros, funcionários civis e militares, lavradores, homens do campo, o pensamento insone do Brasil é este: Onde vou arranjar o dinheiro?

Um precisa de muitos milhões, e não dorme; o segundo precisa de um milhão e meio, e não dorme; o terceiro precisa de 320 mil cruzeiros, e não dorme; o quarto precisa de 75 mil cruzeiros, e não dorme; o quinto precisa de 12 mil cruzeiros, e não dorme; o sexto precisa de 2 mil cruzeiros, e não dorme; o sexto, o sexto talvez precise de 500 cruzeiros, ou menos, e não dorme. Falta sempre dinheiro. Falta dinheiro para pagar a comida, o remédio, os empregados, o colégio, o enterro, o banco, a prestação — e ninguém dorme. Repare na expressão dos brasileiros, quando caminham sozinhos na cidade e no campo: duros, chateados, alastrados desse intolerável eczema que é a falta de dinheiro. Mesmo de boca fechada — olhe bem —, eles estão todos de bico aberto. Como galinhas perseguidas por um menino, que se diverte com um porrete, em um dia de calor.

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