Haverá guerra, alguém me pergunta. Olho a paisagem: há nuvens no céu, mas os espaços azuis impedem que o mar se acinzente; uma senhora estende roupas brancas no varal; os operários continuam nas construções; passam os aviões de carreira; meus filhos estão na escola, um deles compôs hoje de manhã uma obra-prima com a palavra-chave: a chave está na fechadura.

Não, parece que não haverá. Chega o jornal e anuncia: o mundo em perigo de guerra. Retiro o que disse: pode haver guerra. É estúpido, é insano, pode haver guerra, uma guerra incomparável, um suicídio terrestre. Mas, se olho a calma em torno, e se de fato houver guerra, nunca a iminência dum conflito encontrou a humanidade tão sossegada. Por quê? Porque, desta vez, os homens não são consultados, nada podem fazer contra os acontecimentos. A gente luta contra uma doença, mas esquece a fatalidade da morte. Ora, ninguém sai às ruas para protestar contra a condição biológica que nos faz mortais. Daqui a cinco, dez, 20, 50 anos, morreremos de câncer, de desastre, de coração, de estatística; mas se houver guerra nuclear, morreremos de guerra nuclear. A hipótese da guerra já se confundiu à consciência de nossa morte inelutável; não há nada a fazer.

Isso explica essa chocante anestesia popular, quando as notícias admitem a possibilidade da guerra. O mundo tem dois bilhões e meio de habitantes; estão todos alienados dos acontecimentos. Nem mesmo os 350 e tantos milhões de soviéticos e americanos podem manifestar a sua vontade de paz. Não serão consultados antes do lançamento da primeira bomba de 100 milhões de toneladas de TNT. Se a eles os governantes negam o direito de escolher entre a paz e o aniquilamento, a nós nada cabe fazer. Marquemos, pois, os nossos programas de fim de semana como se estivéssemos no mais pacífico dos mundos. Não somos os donos da nossa morte, não somos nós os responsáveis pela sobrevivência da vida sobre a Terra. Isso será decidido por alguns militares e políticos de profissão. De um lado, poderão concluir que deveremos todos perecer em nome da democracia ou da civilização cristã; de outro, em nome duma sociedade sem classes ou sem imperialismo econômico. Eis afinal em que deram as duas ideias mais perfeitas entre todas que a humanidade produziu: a de liberdade e a de justiça.

Mas pode não haver guerra. É verdade. Contudo, exceto a natureza das próprias circunstâncias políticas e militares, nada realmente de objetivo colaborou para a paz. Ninguém, a não ser os destemperados inconsequentes, deseja a guerra; mas, de lado a lado, ninguém acreditou até agora que fosse medida segura iniciar uma nova política de paz, de confiança recíproca. A anestesia popular diante da guerra, embora perfeitamente explicável, também não ajudou a melhorar as possibilidades de paz, pelo contrário. Minha impressão é de que o mundo devia ter esperneado mais pelo seu desejo de viver. Substancialmente, o clamor universal pela paz não influiria numa decisão por parte de militares e políticos dos EUA e da URSS. Mas esse clamor, essa consciência mundial contra a beligerância, esse plebiscito espontâneo e ecumênico votando pela paz, sempre ajudariam a diminuir a tensão entre as duas potências e, sobretudo, animariam as medidas pacíficas que ambas porventura viessem a tomar futuramente. Pois essa é uma guerra na qual muito pesam os fatores psicológicos, emocionais; nunca houve na história qualquer outro estado conflituoso no qual tais fatores fossem tão desagradavelmente importantes, nem mesmo durante as guerras religiosas. Essa afirmativa pode parecer contraditória, quando sabemos que as duas nações em estado pré-belicoso aturam de parte a parte insolências e violações que não foram suportadas no passado. O que se convencionou chamar de “guerra fria” dá a impressão superficial de que soviéticos e americanos mantêm a cabeça no lugar e os nervos controlados.

A realidade talvez seja outra. As guerras passadas foram empreendidas pelo menos com alguma esperança de vitória. Hoje, ninguém acredita em vitória, pelo menos em vitória material. Ora, não havendo dos dois lados a suposição de que um plano estratégico possa eventualmente infligir uma ampla e vantajosa derrota ao inimigo, se a guerra só poderá ser uma catástrofe para todos os sobreviventes, as razões técnicas, estratégicas, militares não poderão ser, por força, a motivação fundamental do início das ações armadas. Confiado no poderio militar é que nenhum dos dois países levará a guerra ao outro. Assim, logicamente, insinua-se o contingente emocional, a fadiga, o medo, o desespero como a força sinistra e aleatória que poderá declanchar o inominável desastre.

É idiota, é inimaginavelmente grotesco, mas estamos hoje dependendo dos nervos humanos e do bom funcionamento dos engenhos eletrônicos. Uma célula nervosa que falhe, uma célula eletrônica que desande, e seremos consumidos pelo fogo. Um palavrão lançado dos EUA para a URSS, e vice-versa, e a continuidade da vida sobre a Terra ficará improvável. Eis a que ponto nos levou a grande ciência dos homens. Dois meninos estão parados um diante do outro, os punhos cerrados, em guarda; entre eles, no chão, há uma cusparada; se um deles passar o pé no cuspe, vai começar a última briga da história.

paulo-mendes-campos
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