Fonte: Toda crônica.  Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 318. Publicada, originalmente, na revista Careta, 19/02/1921, e no livro Coisas do reino do Janbom, p. 157.

Este negócio de assassinatos perpetrados pelos maridos, por adultério da mulher, dá lugar a muitas reflexões. A estupidez desses matadores é evidente; a sua perversidade não é menos.

Mas os jornais, no dever de forçar a publicidade e provocar a curiosidade, trazem à tona cousas bem interessantes.

Não quero falar bobagens e quinquilharias da vida doméstica de um qualquer casal: não quero falar do caderno da venda nem das reclamações do vizinho; não quero falar do choro das crianças nem das palmadas paternas e maternas. Tudo isto é igual em todas as notícias desses casos tristes em que um bobo ou perverso marido mata a mulher porque adulterou.

No último caso, porém, em que isso se deu, surgiu uma situação onde a bodega de lei dança uma dança macabra com a justiça e a razão. Relembro um pouco um sujeito qualquer que descobre a mulher em flagrante adultério. Tenta matá-la à faca; o amante se interpõe e o marido o mata. Bem. Até aí, nada de novo.

O que de novo aparece é o código civil ou criminal ou lá que for. Qualquer de um desses famosos calhamaços diz que a essa pobre mulher que escapou de ser morta, e, se o não foi, deve-o à generosa coragem do seu amante; a essa pobre mulher o calhamaço dá direito, ao matador manqué, de processá-la e arranjar a sua condenação a um ano de prisão celular.

Ora bolas! O que é mais grave é o adultério ou a tentativa de assassinato? Então o tipo que me mata ou tenta matar-me porque furtei um pão à sua padaria, pode processar-me por crime de furto?

Então eu que atiro e firo o gatuno que me vai furtar as galinhas do quintal, posso processá-lo por crime de furto?

Já se viu uma cousa dessas?

Essa jurisprudência é uma coisa muito engraçada! 

lima-barreto