Informa-se oficialmente que chegou o outono, tempo de anêmona, begônia, ervilha-de-cheiro, gerânio e, principalmente, amor-perfeito. Sim, acredite-se ou não, dessa flor de nome impossível, lembras-te, alma? que enfeitava os poemas de Cecília Meireles:
Suas cores são as de outrora,
com muito pouca diferença:
o roxo foi-se quase embora,
o amarelo é vaga presença.
E em cada cor que se evapora
vê-se a luz do jardim suspensa.
Quer dizer: flor que se colocava entre as páginas do livro, flor que ia desbotando com o tempo, mas que dizia sempre da nostalgia do jardim antigo e do amor idem.
Então, se o outono chegou (não se sabe donde veio, nem onde está; junto à piscina do Copa, entre estarletes semostradeiras do Festival, é que não pousou), quem tiver seu vaso na varanda cuide bem dele, para ver abotoar a flor outonal. E quem não tiver, fique por aí imaginando flores, mesmo correndo o risco de ser acusado de alienação, tanto pela direita como pela esquerda. Sendo que o amor-perfeito, absolutamente fora de moda, é, entretanto, das mais belas merecedoras de louvação.
Continuo lamentando que nosso tempo abomine flores, a não ser a margarida padronizada que hoje se pinta nos automóveis. Esse desamor não será levado a seu crédito, no dia em que os tempos prestarem contas ao Eterno. Os amores-perfeitos não falam só a linguagem dos corações, que é controvertida e feita mais de silêncios que de fonemas e sintagmas. São expressivos em si, e passo a palavra a Hermes Moreira de Sousa, que entende do riscado:
“Quando bem aberta e de tamanho regular, a flor do amor-perfeito se apresenta como se tivesse um rosto, concorrendo o colorido que possui para exercer um efeito apelativo sobre o observador”. E continua: “As flores estão sempre voltadas para a direção de onde provém maior irradiação solar, e os rostos apresentam-se como que parados, atentos”.
Quem ainda não percebeu essa expectativa tensa do amor-perfeito, e não lhe sentiu a atitude moral, não merece cultivá-lo, como de resto ninguém o cultiva mais, depois de falecida certa querida parenta minha, que, em seu jardim mineiro, os tinha estupendos e grandes, como admiráveis eram também suas flores-de-seda, seus cravos, rosas, dálias e crisandálias, mas estou fugindo ao assunto.
Pensée, pansy, heart's-ease, como quer que se lhe chame, há sempre o reconhecimento de certa propriedade sensitiva ou reflexiva no amor-perfeito. Não é (não seria) mera flor para adorno, anódina, meio boba: tem atitude, comportamento de gente, entre delicado e nobre.
As mais antigas estampas conhecidas de amor-perfeito, pelo que me sopra meu espírito-santo-de-orelha, têm cerca de 400 anos. De então para cá, a flor mudou muito, por obra e graça de cultivadores proficientes, que lhe deram novas cores e dimensões. Confesso que o amor-perfeito do tamanho de uma página de jornal me poria em fuga, e parece que na Suíça trabalham para isso, com sua espécie gigante. Em 1813, o dicionarista Morais registrava suas “cinco pencas roxas e amarelas”, hoje temos o marrom e o vermelho, e a pauta de tons, segue o capricho da arte.
No calendário é outono, e não vejo lá fora sinais de que ele esteja acontecendo de fato entre os viadutos, o imposto de renda e os mortos de Alagoas. Muito menos no invisível amor-perfeito que procuro no jardim invisível da cobertura. Mas se o calendário falou, vamos acreditar no calendário, cultivando em pensamento essa flor que abre no outono e tem um nome que antigamente se usava tanto, tanto... Lembras-te, alma?