Periódico
Correio da Manhã

Publicada em O gato solteiro e outros bichos, Record, 2022, pp. 149-151. 

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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No momento, duas girafas provocam admiração e inveja no povo carioca.

A admiração provém do fato de serem, realmente, essencialmente girafas. Em geral, nossas girafas deixam muito a desejar. São de compensado, plástico, cartolina ou papel; servem a promoções comerciais, e é só. Poucas, mais concretas, trabalham no circo, e podemos considerá-las antes escravas do que artistas; ficamos a desejar-lhes um 13 de Maio. As de agora, ostentando um físico iniludível, não se propõem a vender coisa alguma, nem trabalham grátis no picadeiro. Percebe-se, ao apalpá-las, que nasceram girafas, embora o fizessem em Antuérpia e não na selva africana, e girafas continuam, com admirável pertinácia, em época de mutações desconcertantes: girafas puras, ao natural. Um garoto, a meu lado, comentou diante da foto:

— Puxa, mas são um bocado girafas, hem? 

E ainda não vira os originais. Os que viram são unânimes em atestar a girafalidade intrínseca dos dois exemplares, e à admiração juntam inveja.

A razão desta última é que, mal chegaram ao Rio de Janeiro, as duas girafas, ou melhor, o casal de, não teve problemas. Táxi, hotel, essas coisas? Encontram à sua disposição área residencial vasta e privativa, que lhes permite espalhar confortavelmente as pernas, sem invadir propriedade alheia. Não lhes deram nenhum apartamento tipo quarto/kit, onde se acumulam cachos de cinco, seis ou mais não-girafas. Têm sol à vontade! E outras fortunas. E chamam-se, idílica, porém não shakespearianamente, Romeu e Julieta, sem Montecchios e Capuletos a se matarem em volta por questões de família. São talvez os derradeiros namorados românticos, e pastam suas proteínas e sais minerais com uma tranquilidade, mas com uma tranquilidade...

Não que essas pessoas reprovem a largueza imobiliária, a boa comidinha dada a girafas. Quem se integra na natureza não pratica esse egoísmo, antes aprova e louva tais cuidados. O que aflora ao pensamento do observador encantado é uma ideia, uma hipótese, um ponto de interrogação cercado de muita cisma: “Se eu tivesse nascido girafa, talvez fosse mais feliz”. Em todo caso, contemplar uma girafa, pelo menos até agora e aqui, onde elas são raras e quase nunca autênticas, é uma pequena felicidade.

Também fui vê-las, ou pensei em ir, e foi como se tivesse ido, pois a foto resolve para mim a questão do espaço/tempo. Fui e vi. Vi e gostei. Gostei e não entrevistei as girafas, sabendo que, mesmo tendo língua de meio metro de comprimento, elas não são de muito falar. O laconismo, senão o silêncio das girafas, encerra lição. E daí, quis poupar-lhes o elogio obrigatório da cidade, e outras convenções caducas. Envolvê-las no processo político, pedir que tomassem posição à esquerda, à direita, no centro, de pé ou deitadas, seria impertinente. É preciso deixar que pelo menos as girafas continuem elas mesmas, quando conseguem sê-lo, e parece ser o caso dessas recém-chegadas ao Jardim Zoológico. Tenho observado, ao longo de uma vida mais extensa que a das girafas (elas duram cerca de 20 anos) que a tentação do ser é ser outro ser, é anular-se para assumir outra identidade, coletiva, de classe ou de grupo, numa participação que significa mais alienação do que outra coisa, pois com ela se esfumam o essencial, do indivíduo e sua liberdade profunda, único instrumento próprio de que dispõe para julgar o mundo, os governos, os fatos, o sentido da existência.

Estou divagando. E queria apenas saudar as girafas, declarar-me também amigo e admirador das duas, as boas, as legítimas girafas que acabam de chegar ao Rio, e não vêm para perturbar nem oprimir: vêm para continuar a ser girafas, honradamente.

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