Imagens do dia

Toda vez que vejo um par de namorados, procuro não importuná-los e sigo com ar ausente. Por isso não entrevistarei nenhum sobre o dia deles, que o comércio situou em 12 de junho. Gostaria, entretanto, de saber como lhes parece a data, se é que lhes parece. Minha impressão é que os namorados não tomam conhecimento do dia, ou por outra: o ano inteiro é para eles 12 de junho, ou dia de namorar.

Que é namorado? Inútil tentar defini-lo: se ele próprio não sabe o que seja, não adianta recorrer ao dicionário. Este nos dirá, entre outras coisas, que namorado é peixe. Sim, mas de uma singular espécie, pois não morre só pela boca, senão também pelos olhos. Namorado era ainda o grilhão pesando 40 arráteis (mais de 17 quilos) arrastado pelos presos da cadeia do Limoeiro, em Lisboa, nos velhos tempos, quando o dr. Salazar nem sonhava em existir, mas já se coligiam elementos para ele governar tranquilo e vencer qualquer eleição. Esse grilhão, pesando muitas e muitas arrobas, parece-me vê-lo e ouvi-lo ranger em volta de mãos e pés dos namorados, que fingem ignorá-lo e caminham tranquilos e leves. Namorado é finalmente aquele ou aquela que corteja, que requesta, que se afeiçoa; o dicionário chega a positivar: “que se apaixona”, e até: “com intenção de casamento”. Ora, a maioria dos namorados não corresponde a essa definição.

O namorado é e não é. Tende a ser, como tende à evanescência. Acorda com o apetite da eternidade, e não chega ao entardecer. Também lhe sucede despertar sem plano, ou com o propósito de demitir-se, e subitamente ocorre a cristalização, que o converte em duro e doloroso apaixonado. Nunca sabe o que se passa consigo e muito menos com o seu par. De ordinário não se leva a sério, por isso não está preparado, não pressente o perigo, não se defende.

O que distingue o namorado será talvez, com o desapego ao tempo, a integração no instante — instante físico, sentimental, humano. Enquanto o amante se suplicia com o pensamento de que a vida toda não é bastante grande para caber sua paixão, o namorado se deixa viver, sentindo que as horas, e não os anos, lhe servem perfeitamente de quadro.

O namorado é um perseguido, porque as pessoas, autoridades ou não (falo dos países subcivilizados) veem nele um ser anômalo, alheio às realidades econômicas, sem noção de trabalho, partido, religião: porque se desligou da rotina; sobretudo porque é ou parece feliz e o espetáculo da felicidade alheia contribui para tornar mais crua a nossa carência de felicidade. A repressão ao beijo nos jardins públicos é praticada em nome da moral, por policiais ou simples cidadãos que adorariam estar ali fazendo a mesma coisa, ou se esquecem de que um dia fizeram.

Não venho, porém, reclamar privilégios ou direitos mínimos para os namorados, como o reconhecimento de sua condição aérea e irresponsável, criação e reserva de sítios amenos para eles, redução de preço nos concertos, confeitarias, tarifas postais e telegráficas, e nas viagens. O Brasil está crescendo tão depressa que não lhe sobra tempo para reparar nessas pequenas coisas de civilidade e simpatia humana. E os namorados, tão parecidos uns com os outros pelo mundo afora, jamais se organizariam em Internacional, nem mesmo em modestos comitês de bairro. São individualistas, pedem apenas que os deixemos em paz. Mas ser deixado em paz é a reivindicação suprema de todo vivente, nos dias que correm, e não há constituição ou governo que opere esse milagre. De qualquer modo, bom-dia aos namorados!

carlos-drummond-de-andrade
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