Imagens de gente

Manhãzinha, o garoto desce o morro para vender jornal. Do quarto andar da penitenciária, um preso madrugador faz sinais ao menino. Para nada. Para fazer sinal a alguém que está livre. O menino responde com outro gesto. Entre os dois se estabelece uma conversa de braços; com o tempo, de palavras.

Chico tem 12 anos, o sorriso na azeitona lustrosa do rosto. O homem está ali há anos, vendo o tempo passar. Quem passa é o menino, que às vezes acorda o homem ao amanhecer. Assovia; se o homem custa a aparecer, ele grita: 

— Ciaano!

O sentenciado tem nome de pintor: Ticiano. O nome diminui, fica do tamanho do menino, a aproximá-los. Surge o busto de Ciano, entre grades. Chico saúda-o com o gesto largo, o sorriso que clareia o rosto inteiro. De tanto se cumprimentarem ficaram amigos.

Um dia Chico aparece na penitenciária:

— Quero falar com Ciano. Aposto que ele também quer falar comigo.

— Criança sozinha não entra.

— Quem disse que estou sozinho? Esta aqui é minha irmã caçula.

(Chico é o degrau mais alto, na escadinha de seis, feita por um carpinteiro e uma lavadeira. A garotinha dá a mão a Chico, compenetrada do papel de acompanhante.)

— Moço, deixa eu ver meu amigo, deixa...

Ele pede com olhos e voz tão especiais de pedir, que acaba entrando. Ciano recebe-os com distinção, paga-lhes refrigerantes na cantina, leva-os ao trapézio, conversa. Chico não tem programa além de vender jornal; falta-lhe chance. 

— Mas você gostaria, Chico?

— Demais!

Por acaso, há na penitenciária um recluso importante, condenado por uma dessas faltas que costumam levar à fortuna e ao poder. Ciano pede-lhe que recomende Chico a uma de suas empresas cá fora. Dão ao garoto um lugar de boy, tacam-lhe livros e cadernos na escola. Chico deixa de vender jornal na rua, mas, por fidelidade, continua a servir os fregueses de casa. Vai entregar uma carta ao Museu de Arte Moderna e as linhas do prédio o fascinam, “Quando crescer serei arquiteto”. O diretor da tal empresa matricula-o num curso noturno de desenho. Agora subiu a protocolista no escritório. Sua vida começa como sempre às 3h30: jornal, escola, almoço, emprego, jantar, escola. Cansado? A fieira de dentes, iluminando a cara, diz que não. 

Aniversário de Ciano, Chico vai visitá-lo brandindo o bolo de milho que a mãe mandou com um recado: Quando Ciano sair, terá de ir ao barraco para comer um bolo maior, especial. A vida tem dessas coisas: às vezes é um sentenciado que, de sua cela no quarto andar da penitenciária, funciona como serviço social e dá a mão a um garoto do morro.

carlos-drummond-de-andrade
x
- +