Imagens d'água

Se o colunista disser que foi ao banho de mar, receio que o leitor não se sinta maiormente interessado pelo acontecimento. Entretanto este é um acontecimento, pela generalidade que envolve sob aparência individual. Há no Rio uma porção de gente indecisa, omissa, que vive suspirando por praia e só se anima a frequentá-la quando o verão encerra o expediente. Quem mora perto do mar é quem mais comete este pecado. Deixa o mar para depois, não repara que ele está chamando. Gente de bairros distantes acode imediatamente ao apelo e invade aos domingos a área vacante deixada por praieiros desidiosos. Aí estes se alertam, na iminência de se verem espoliados, vestem o calção do ano passado e caem afobadamente na água, ô delícia! ô remorso!

Este ano o verão fez falseta, escondido sob o telão de chuva e vento. Nunca mais a praia se abrirá em sol e festa de biquínis, era o suspiro geral, e houve quem falasse em surfe como em lendas do temps jadis. Eis que de repente, nos últimos dias, o azul do mar entra pela casa adentro e puxa pela perna o banhista desanimado: “Venha sob as penas da lei; sou o único azul possível, no verão em fogo: venha fruir-me, se é filho de Deus”. Desenha-se no ar o velho slogan do almirante Alexandrino, varão ilustre que, entre outras ilustrações teve a de ser avô do nosso caro embaixador Dora Vasconcelos: “Rumo ao mar”!

O mar recebeu-nos com a majestade que lhe é própria e que de tão evidente prescinde de etiquetas: pouca roupa é o melhor protocolo, curvaturas são as de flexões ginásticas ou balés aquáticos improvisados ao gosto de cada qual. Nunca vi rei mais digno e mais camarada; pode-se virar-lhe as costas, espichado na areia, que ele nos manda uma ondinha mansa fazer cócega no pé. Recepção que ele dá é matinada, ruído, riso e afago total, com a fieira de alegrias saudáveis oferecidas ao corpo, restituído a seu antigo e universal elemento.

Diante de natureza tão saudável, o vinco profissional faz-me sonhar com um jornalzinho para banhistas que se chamasse A Gaivota ou A Sereia de Manhã, impresso em papel salinamente úmido, cor de onda, que divulgasse notícias líquidas, agradáveis, como um verso de St. John Perse: “Une eau pareille en songe au mélange de l’aube”; novos modelos de maiô e acessórios de praia, sabores novos de sorvetes e refrigerantes, jogos e brinquedos de areia (qualquer coisa no gênero foi feita há anos no Recife por José César Regueiro Costa).

E como são diferentes do verão passado os brotos deste verão, na linha de renovação contínua do mar! Todos desconhecidos do cronista, louvado seja Deus. Uma geração se modelou e floriu em 12 meses. A graça antiga não se repete na graça nova. Os brotos são eternos, no variar sempre. A praia é mudança e o mar, imaginoso lançador de manequins adolescentes. De sorte que ir à praia constitui a mais exata maneira de redescobrir a inesgotável adolescência do mundo.

carlos-drummond-de-andrade
x
- +